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Inseminação caseira no Brasil: a luta por reconhecimento jurídico
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Como a prática ganha espaço na sociedade e mobiliza o IBDFAM na defesa da regulamentação
A inseminação caseira, prática na qual a fecundação ocorre fora de clínicas especializadas, tem ganhado cada vez mais espaço no Brasil, especialmente entre casais homoafetivos. Apesar do aumento dos casos, a ausência de regulamentação específica e as divergências de decisões judiciais tornam o caminho para o reconhecimento legal da parentalidade um desafio.
Nos últimos anos, os tribunais brasileiros têm enfrentado casos envolvendo inseminação caseira. Enquanto alguns estados reconhecem a parentalidade com base na intenção e no planejamento familiar, outros exigem comprovação do procedimento ou a presença de vínculo biológico.
A falta de uniformidade nas decisões judiciais afeta diretamente as famílias que optam pela inseminação caseira. Muitas enfrentam longos processos judiciais para garantir direitos básicos, como o registro do filho com o nome dos dois pais ou mães.
É o caso da atriz e produtora Sheila Donio e da cantora e musicista Simone Mello, que passaram mais de dois anos na Justiça em busca do registro da filha, gerada por meio da inseminação artificial caseira. A situação foi noticiada pelo IBDFAM em 2024, quando o caso delas chegou ao Superior Tribunal de Justiça – STJ.
Na ocasião, a Terceira Turma reconheceu a presunção de maternidade de mãe não biológica em caso de inseminação artificial caseira realizada no contexto de união estável homoafetiva. O IBDFAM atuou no julgamento como amicus curiae e, representado pela vice-presidente Maria Berenice Dias, manifestou-se.
Reprodução assistida
A jurista Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do IBDFAM, esclarece que a regulamentação dos métodos de reprodução assistida é feita pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, por meio de normas que regulam a relação médico-paciente. “Para realizar essa técnica via laboratorial, são feitas exigências para dar segurança ao médico e aos pacientes. Um desses requisitos é que as pessoas firmem um documento, junto com o diretor clínico, para segurança interna.”
Para a jurista, a exigência discrimina casais homoafetivos femininos, pois, na hora de proceder ao registro da criança, exige-se um documento (a assinatura do diretor da clínica) que, nesses casos, não existe. “Quando as técnicas são utilizadas por um casal heterossexual não interessa especificar no registro como a criança foi concebida. Por outro lado, em uniões homoafetivas, mesmo que as mães sejam casadas (presunção da filiação), não é possível registrar.”
A solução encontrada por esses casais, explica a vice-presidente do IBDFAM, é ingressar com uma ação judicial em busca da autorização do registro. “Com isso, passa-se muito tempo e, durante esse período, a criança fica desassistida, pois não tem um vínculo de filiação com uma de suas mães.”
CFM e ANVISA
No site da Anvisa, o procedimento de inseminação caseira é definido como a coleta do sêmen de um doador e sua inseminação imediata em uma mulher com uso de seringa ou outros instrumentos, como cateter – normalmente feito entre pessoas leigas e em ambientes domésticos, ou seja, fora dos serviços de Saúde e sem assistência de um profissional de Saúde.
O conselheiro federal Waldemar Naves do Amaral, coordenador da Câmara Técnica de Reprodução Assistida, do Conselho Federal de Medicina – CFM, afirma que a Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM e a Resolução do CFM acerca do tema (nº 2.320/2022) não reconhecem a inseminação caseira como método, acadêmica ou cientificamente reconhecido na assistência à reprodução.
“É uma metodologia que não tem o reconhecimento acadêmico e da ciência do nosso colegiado e também do próprio CFM, e a Resolução do CFM não aborda essa temática. Portanto, a nossa posição é que não reconhecemos o método como prática da assistência à fertilidade no Brasil”, afirma o coordenador da entidade.
Em nota, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa registra que a inseminação caseira está fora da competência do órgão.
O posicionamento da Anvisa é de que no Brasil é proibido todo tipo de comercialização de material biológico humano de acordo com o art. 199 da Constituição Federal de 1988. “Toda doação de substâncias ou partes do corpo humano, tais como sangue, órgãos, tecidos, assim como o esperma, oócitos, deve ser realizada de forma voluntária e altruísta”, registra o órgão.
“Por isso, as mulheres que se submetem a esse tipo de procedimento, na tentativa de engravidar, devem estar cientes dos riscos envolvidos nesse tipo de prática. Como são atividades feitas fora de um serviço de Saúde e o sêmen utilizado não provém de um banco de espermas, as vigilâncias sanitárias e a Anvisa não têm poder de fiscalização”, diz um trecho do documento, que também reúne possíveis riscos para a saúde da mãe e do bebê, como a transmissão de doenças e a contaminação por bactérias e fungos.
Leia a nota oficial da Anvisa sobre inseminação caseira na íntegra.
Lacunas
De acordo com dados da Arpen Brasil, desde 2020 foram registradas 4.246 crianças com mais de duas filiações no registro. Os números, porém, não são restritos ao vínculo socioafetivo – ou seja, englobam outras situações que ensejaram no registro da multiparentalidade.
A registradora Márcia Fidelis Lima, presidente da Comissão Nacional de Registros Públicos do IBDFAM, esclarece que o ordenamento jurídico brasileiro ainda não contempla expressamente a possibilidade de registro direto de crianças concebidas por inseminação caseira.
“O Código Civil não trata expressamente da inseminação caseira. O que temos, até o momento, é uma previsão regulamentar – no Provimento 149/2023 do CNJ – que autoriza o registro direto em cartório quando a reprodução assistida é realizada por meio de clínicas ou profissionais devidamente credenciados pelo Conselho Federal de Medicina. Ou seja, o acesso ao registro extrajudicial está condicionado à formalidade biomédica, o que exclui justamente as famílias que não conseguem custear esses procedimentos”, ressalta a registradora.
De acordo com a registradora, “a reprodução informal, mesmo quando há consenso entre as partes e intenção clara de parentalidade, fica invisibilizada pelo sistema normativo atual, o que representa uma omissão com impacto direto na vida das famílias”.
Uma regulamentação clara, segundo Márcia Fidelis, é essencial para dar segurança jurídica às famílias, proteger as crianças e garantir que os compromissos parentais firmados sejam respeitados. “A ausência de norma específica abre brechas para disputas futuras – como a reivindicação de parentalidade por parte do doador de sêmen ou a negação de vínculo por quem participou da concepção, mas depois se arrependeu.”
A registradora ressalta que as principais barreiras são jurídicas, econômicas e sociais. “Famílias que concebem por reprodução caseira – muitas vezes casais homoafetivos ou pessoas trans, em situação de vulnerabilidade social – não conseguem apresentar os documentos exigidos pelo cartório, como o contrato com a clínica.”
“Diante disso, são obrigadas a recorrer ao Poder Judiciário, o que implicam custos com honorários advocatícios e custas processuais, além da demora para a solução. Isso cria um cenário de injustiça: enquanto famílias com maior poder aquisitivo conseguem registrar seus filhos de forma célere e gratuita, outras são compelidas à via judicial apenas por não poderem pagar por um serviço médico particular”, observa.
Em casos de duplo reconhecimento de maternidade ou paternidade, Márcia explica que os casais precisam ingressar com ações para o reconhecimento da multiparentalidade ou da parentalidade socioafetiva, mesmo quando a intenção procriacional é clara, voluntária e documentada entre as partes. “Trata-se de uma exigência desproporcional diante da realidade afetiva e do melhor interesse da criança, que deveria ser o parâmetro principal para o reconhecimento do vínculo.”
Márcia Fidelis também destaca que os cartórios estão vinculados ao que determina o Código Nacional de Normas, Provimento 149/2023 do CNJ. Isso significa que, quando não há documentação comprobatória da reprodução assistida feita por clínica credenciada, não é possível realizar o registro diretamente em cartório, e os pais são orientados a buscar o reconhecimento por meio judicial.
“Muitos registradores civis, sensíveis à situação, acolhem as famílias, esclarecem os procedimentos e, inclusive, encaminham sugestões de mudança normativa aos órgãos competentes. Contudo, sem amparo legal ou normativo, o registrador não tem margem de atuação extrajudicial nesse tipo de caso”, pondera.
IBDFAM defende regulamentação
Márcia Fidelis Lima afirma que o IBDFAM tem sido protagonista nesse debate. Ela cita o Pedido de Providência protocolado junto ao CNJ, com fundamentação técnica, jurídica e social, no qual o Instituto defende a possibilidade de inclusão da reprodução informal como fato legítimo a ser registrado.
“O IBDFAM ingressou com um Pedido de Providências, junto ao CNJ, para tentar viabilizar o registro das crianças, frutos desse procedimento informal, de forma facilitada e direta, com regras equiparadas às que hoje regulam o registro quando há contratação formalizada, em clínicas credenciadas. A proposta que temos discutido é a de permitir que as partes envolvidas consigam registrar a criança nos moldes do que programaram, dispensando a judicialização e garantindo segurança às partes”, aponta.
A proposta, segundo ela, é clara: “Que haja um procedimento administrativo para formalização da parentalidade nos casos de inseminação caseira, nos moldes já previstos para outras formas de multiparentalidade e filiação socioafetiva. Com isso, será possível reduzir desigualdades e afirmar o compromisso do Estado com a dignidade das famílias brasileiras — todas elas, e não apenas aquelas que podem pagar por uma clínica credenciada”.
O IBDFAM entende que, em casos de inseminação caseira, cabe ao oficial do registro civil fazer uma averiguação hábil, tal qual para o reconhecimento da filiação socioafetiva.
Modalidade legítima
Na visão de Márcia Fidelis Lima, o principal impasse na atualidade é a exigência documental, que limita a atuação do registrador mesmo quando há concordância de todos os envolvidos. Outro ponto de tensão, segundo ela, é o reconhecimento da dupla maternidade ou dupla paternidade – especialmente quando não há casamento ou união estável registrada.
“Em tese, a filiação deveria se fundar no projeto parental, na intenção de criar, amar e proteger aquela criança. Contudo, a falta de regulação específica para a reprodução informal impede que essa realidade seja acolhida plenamente no extrajudicial”, avalia.
Para a registradora, é necessário o reconhecimento jurídico da inseminação caseira como modalidade legítima de constituição familiar. “O Estado brasileiro precisa garantir que o projeto parental voluntário – mesmo realizado fora do circuito biomédico – seja juridicamente válido, desde que haja consentimento informado entre pessoas maiores, capazes e legitimamente envolvidas, e que o bem-estar da criança seja, como determina nossa Constituição, o princípio orientador.”
“Minha proposta, discutida em espaços como o IBDFAM e a ARPEN-BR, é a criação de um Termo Declaratório Extrajudicial, lavrado perante o registrador civil de livre escolha dos envolvidos. Nesse termo, os futuros pais assumem a filiação da criança, enquanto eventuais colaboradores (como doadores de gametas ou gestantes de apoio) e assumem formalmente o compromisso de não reivindicar vínculos parentais fora do que foi pactuado”, frisa a especialista.
Ela complementa: “Ao mesmo tempo, esse termo vincula os pais ao dever de perfilhar, inclusive nos casos em que a criança nasça com deficiência ou doença grave. A proposta visa garantir, desde o início, o direito de a criança ter uma família – com estabilidade, afeto e proteção jurídica. Esse documento seria arquivado em base nacional e serviria como suporte para o registro de nascimento, assegurando isonomia e segurança”.
Direito Comparado
A presidente da Comissão Nacional de Registros Públicos do IBDFAM destaca que outros países enfrentam dilemas semelhantes, e cita o caso da França, “um dos países mais restritivos da Europa em matéria de reprodução assistida".
“Até recentemente, a legislação francesa excluía mulheres solteiras, casais homoafetivos e pessoas trans do acesso à fertilização com doador. Esse cenário levou à proliferação de práticas informais – como a inseminação caseira com sêmen adquirido via internet – e a busca por clínicas no exterior. Diante desse quadro, o governo francês passou a reformar sua Lei de Bioética, ampliando o acesso e reconhecendo a pluralidade familiar”, explica.
De acordo com Márcia Fidelis, paralelamente, o Instituto Nacional de Estudos Demográficos – INED lançou o projeto Outside-ART, coordenado pelas pesquisadoras Virginie Rozée e Elise de La Rochebrochard, com o objetivo de estudar e propor formas de regulamentar práticas “fora do sistema médico-legal”, considerando a realidade social e reprodutiva da população. Confira a íntegra do artigo aqui.
Márcia entende que o Brasil pode – e deve – aprender com esse processo. “A criação de instrumentos jurídicos extrajudiciais que acolham, com responsabilidade e rigor, a reprodução informal é um caminho possível e necessário.”
“O compromisso constitucional com o melhor interesse da criança, com a dignidade das famílias e com a pluralidade dos vínculos exige que avancemos nesse sentido”, conclui a especialista.
Por Débora Anunciação
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