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Mães buscam registro de dupla maternidade há dois anos; STJ julga caso de inseminação caseira
Júlia tem quase dois anos e duas mães, mas apenas uma delas consta em seu registro de nascimento. Há dois anos, a atriz e produtora Sheila Donio e a cantora e musicista Simone Mello buscam na Justiça o direito de registrar a dupla maternidade da filha, e o caso será analisado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ.
É a primeira vez que o STJ deve se manifestar sobre a negativa de registro de filiação por inseminação caseira. O recurso especial foi distribuído à Terceira Turma do STJ, sob relatoria da Ministra Nancy Andrighi, e aguarda pauta para julgamento.
O caso contou com atuação da advogada Ana Carolina dos Santos Mendonça (@prof.carolinamendonca), membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. Ela conta que foi procurada pelo casal antes mesmo da gravidez.
O objetivo do casal era compreender o processo judicial. “Elas já viviam em união homoafetiva registrada por escritura pública desde 2018, e tinham o sonho da maternidade conjunta, que foi realizado com muito planejamento, afeto e dedicação.”
Sheila Donio conta que elas se conheceram em 2018, em um curso de teatro, em Curitiba. Na época, Simone Mello já era mãe de Lucas, hoje com quase 27 anos, e Samuel, com 24.
“Logo que começamos a namorar, Simone começou a vir para São Paulo e ficar um pouco aqui, um pouco em Curitiba. Em dezembro de 2018, ela se mudou em definitivo para São Paulo e registramos união estável para ter maior segurança de que a nossa família fosse reconhecida”, lembra Sheila, hoje com 41 anos. Simone tem 51.
Simone conta que sempre quiseram ter filhos juntas, motivo pelo qual analisaram as opções disponíveis. “O que fazia mais sentido para nós era a autoinseminação, popularmente chamada de inseminação caseira. Seja por falta de condições financeiras para buscar uma clínica, seja pela idade avançada, que não permite esperar a fila do Sistema Único de Saúde – SUS, esse é um caminho comum para muitas famílias.”
Sheila Donio e Simone Mello / Crédito: Ana Luiza Pucca
O pré-natal, segundo Sheila, foi tranquilo e intenso. “Juntamos a documentação necessária para solicitar a autorização de registro da dupla maternidade ainda antes do nascimento, enquanto éramos acolhidas pela equipe escolhida por nós duas, a dedo, para que nossa filha nascesse em um parto domiciliar planejado, com saúde e segurança. E assim foi.”
“Em 25 de julho de 2022, a Júlia nasceu nos braços da Simone, no aconchego do nosso lar. Como recomendado, ela mamou nas duas mães logo na primeira hora de vida. E nesses quase dois anos ela segue sendo cuidada e educada pelas duas mães, sem distinção”, relembra Sheila.
Desigualdade
O pedido de alvará judicial pela autorização do registro de dupla maternidade foi ajuizado no Fórum Regional de Jabaquara, em São Paulo, um mês antes do nascimento da bebê. A ação incluiu um pedido expresso de utilização, por analogia, do Provimento 63 do CNJ vigente à época, afastando entretanto, a exigência do documento emitido pelo diretor da clínica, inexistente em casos de inseminação caseira.
As mais de 50 sentenças procedentes anexadas ao caso, de processos nos quais Ana Carolina dos Santos Mendonça atuou em mais de quatro anos, no entanto, não foram suficientes para garantir a viabilidade do pedido na origem.
Na visão da advogada, o motivo é o preconceito e a desigualdade de tratamento contra famílias LGBTs e a inseminação caseira – “realidades presentes e constantes em diversos julgados”. “Se não fosse assim, não teria qualquer cabimento uma decisão que nega um pedido, pela ausência de um documento, cuja ação foi ajuizada justamente para se suprimir a exigência.”
A sentença julgou o feito improcedente sob o argumento de não atenção aos documentos exigidos pelo Provimento 63 do CNJ, especificamente por ausência de declaração da clínica atestando o procedimento e os beneficiários. Conforme a sentença: “(...) Ainda que assim não fosse, as autoras confirmam a adoção de método informal de inseminação (autoinseminação – inseminação caseira) o que não atende ao regramento do artigo 17, inciso II. Assim, não tendo as autoras se desincumbido do ônus probatório quanto ao fato constitutivo do direito, nos termos do artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, tampouco observado ao regramento vigente para utilização das técnicas de reprodução assistida, não é possível se reconhecer a pretensão aqui deduzida”.
“Foram então opostos embargos de declaração informando o nascimento com vida, os quais foram rejeitados, com o argumento de que ainda que tivesse ocorrido o nascimento com vida, o procedimento não atendia à exigência do inciso II, artigo 17, do à época vigente Provimento 63 do CNJ”, pontua a advogada.
A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. Para o colegiado, “o procedimento caseiro não regulamentado no ordenamento pátrio impede o acolhimento da pretensão inicial”.
Atualmente, tramita no CNJ um pedido de providências protocolado pelo IBDFAM pela revogação do artigo acima citado. O Instituto defende que a exigência, além de custosa, limita o exercício da cidadania e é discriminatória, pois desconsidera a inseminação caseira. Saiba mais.
Ana Carolina entende que o julgamento do tema pelo STJ “representa uma esperança para que outras famílias possam seguir exercendo o seu direito ao livre planejamento familiar, sem medo do destino e incerteza do processo judicial e de como se dará o exercício de seus direitos, e sem medo da invisibilidade e de marginalização de sua maternidade”.
Incerteza
De acordo com Sheila, a falta do documento impacta a rotina da família, que vive aflita, angustiada, e sempre à espera do próximo constrangimento. “A Simone não pode sair com tranquilidade sozinha com a Júlia.”
“Eu não posso viajar a trabalho e deixar as duas sozinhas. Isso porque, se acontecer alguma coisa, a Júlia não tem nenhum registro dessa mãe na certidão dela”, diz.
Simone Mello e Sheila Donio com a filha, Júlia / Arquivo pessoal
A produtora acrescenta que a esposa não pode responder pela filha em hospital, escola, viagens, e tantas outras situações. Além disso, a filha “não tem seu sobrenome completo no seu documento, nem o nome de uma de suas mães, nem o nome de dois de seus avós”.
“São quase dois anos que vivemos desamparadas pela lei, mesmo tendo buscado o Poder Judiciário antes mesmo da Júlia nascer. Tivemos nosso direito negado repetidas vezes. É revoltante que, em 2024, ainda estejamos expostas a tamanha injustiça e invisibilidade”, observa.
A falta do registro, segundo a advogada do casal, impede a integralidade dos direitos. “Júlia tem duas mães, mas uma delas não aparece em sua certidão de nascimento e assim não pode por ela responder; Júlia tem quatro avós, mas apenas dois aparecem em sua certidão; Júlia tem dois irmãos e não usufrui do direito ao mesmo sobrenome e ao vínculo deste parentesco; Simone, por sua vez, não responde pela filha e Sheila não pode partilhar com a companheira as responsabilidades legais da prole comum.”
Integralidade de direitos
A expectativa de Ana Carolina Mendonça é que o STJ afaste de vez toda a carga de julgamento moral que recai sobre o tema e promova uma análise justa do direito posto. “Não há uma linha em nosso ordenamento jurídico que proíba ou criminalize a inseminação caseira.”
“A concepção de Júlia se deu no curso da união homoafetiva vivenciada pelo casal. A filiação de Júlia é presumida, seja pela concepção no curso de união homoafetiva, seja pelo planejamento comum ao casal. Se na fecundação heteróloga realizada por casais heterossexuais, na constância do casamento, aplica-se a presunção de filiação, a mesma lógica deve ser estendida ao casal LGBT, sob pena de se outorgar tratamento discriminatório e desigual”, pondera a advogada.
O casal espera, com o julgamento, exercer a maternidade em sua plenitude. “Estamos pedindo apenas os mesmos direitos de tantos outros casais que registram seus filhos: direito de criar a Júlia em segurança, de sermos identificadas como mães dela em qualquer situação. Nada, além disso”, diz Simone Mello.
“Não fizemos nada ilegal ou errado, pelo contrário, fizemos o que tantos casais fazem. Portanto, contamos com a Justiça para nos reconhecer e nos amparar”, antecipa Simone.
Por Débora Anunciação
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