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STJ: mães poderão registrar filha gerada por inseminação caseira após dois anos; IBDFAM atuou como amicus curiae
Atualizado em 17/10/2024
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ reconheceu a presunção de maternidade de mãe não biológica em caso de inseminação artificial caseira realizada no contexto de união estável homoafetiva. O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM atuou como amicus curiae e, representado pela vice-presidente Maria Berenice Dias, se manifestou no julgamento, realizado na terça-feira (15).
O acórdão, publicado nesta quinta-feira (17), cita os juristas Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do IBDFAM, Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto, e a própria Maria Berenice Dias. Confira na íntegra.
O caso analisado envolve um casal que, há dois anos, busca na Justiça o direito de registrar a dupla maternidade da filha, no Recurso Especial – Resp 2.137.415/SP, sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, que decidiu não haver negativa de prestação jurisdicional.
“Para que se verifique a presunção de filiação prevista no artigo 1.597, inciso V, do Código Civil, é necessário que estejam presentes os seguintes requisitos: primeiro, a concepção da criança na constância do casamento; segundo, a utilização da técnica de inseminação artificial heteróloga; e terceiro, a prévia autorização do marido. Verificada a concepção de filho no curso de convivência pública, contínua e duradoura, com intenção de constituição de família, é viável a aplicação análoga do disposto no artigo 1.597 do Código Civil às uniões estáveis, tanto heteroafetivas quanto homoafetivas, em razão da equiparação promovida pelo julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 132, pelo Supremo Tribunal Federal – STF”, afirmou a relatora.
Andrighi esclareceu que não há no ordenamento jurídico brasileiro vedação explícita ao registro de filiação realizada por inseminação artificial caseira. “A interpretação do artigo 1.597, inciso V, à luz dos princípios que norteiam o livre planejamento familiar e o melhor interesse da criança, indica que a inseminação artificial caseira é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro”, acrescentou.
Sendo assim, a ministra votou pela presunção da maternidade, o que autoriza o registro da dupla maternidade do caso em questão, dispensando a necessidade da documentação exigida pelo Provimento 149/2023, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
Manifestação do IBDFAM
Após o voto da ministra Nancy Andrighi, foi concedida a palavra à Maria Berenice Dias que, em nome do IBDFAM, declarou concordar com a manifestação e com o voto da relatora. “A possibilidade de registro, independentemente de qualquer formalidade, está sendo admitida pela Justiça, quando a pretensão já formulada junto ao CNJ visa garantir que o registro possa ser feito diretamente no cartório de registro civil, sem a exigência do documento firmado pela clínica de reprodução assistida”, afirmou.
A jurista pontuou que a exigência documental não pode ser levada ao Judiciário sempre que uma criança gerada por inseminação caseira nascer. De acordo com ela, a exigência de documentação leva a situações como a que chegou ao STJ, que poderiam ter sido resolvidas de forma extrajudicial.
“Neste caso, por exemplo, a criança já tem dois anos e ainda não possui o registro de nascimento com o nome da sua mãe. Essa exigência é absolutamente dispensável. O que ocorre é que o oficial de registro não faz a verificação para confirmar se a criança é fruto de um projeto de família. Quando esse tipo de caso chega ao Poder Judiciário, muitas vezes o juiz não ouve testemunhas, não colhe depoimentos das partes, não realiza instrução adequada. Simplesmente o juiz acaba homologando a possibilidade, mas pode levar muito tempo para que isso aconteça — como neste caso, em que já se passaram dois anos para que essa decisão fosse obtida”, apontou.
A jurista defendeu que a exigência documental não deve ser aplicada para a efetivação do registro civil no nascimento. “A questão envolve o direito à licença-maternidade, ao auxílio-maternidade, ao direito à identidade da criança e ao acesso ao plano de saúde de uma das mães ou dos pais. Quando o registro não é feito no momento do nascimento, surgem muitas dificuldades”, manifestou-se a jurista.
Confira o julgamento na íntegra:
Relembre o caso
No caso em questão, a bebê gerada por inseminação artificial tem quase dois anos e duas mães, mas apenas uma delas consta em seu registro de nascimento. Desde que a menina nasceu, as duas buscam na Justiça o direito de registrar a dupla maternidade da filha. A advogada Ana Carolina dos Santos Mendonça, membro do IBDFAM, atuou no processo.
O pedido de alvará judicial pela autorização do registro de dupla maternidade foi ajuizado na Justiça de São Paulo, um mês antes do nascimento da bebê. A ação incluiu um pedido expresso de utilização, por analogia, do Provimento 63/2017 do CNJ vigente à época, afastando, entretanto, a exigência do documento emitido pelo diretor da clínica, inexistente em casos de inseminação caseira.
As mais de 50 sentenças procedentes anexadas ao caso, de processos nos quais a advogada atuou em mais de quatro anos, no entanto, não foram suficientes para garantir a viabilidade do pedido na origem.
A sentença julgou o feito improcedente sob o argumento de não atenção aos documentos exigidos pelo Provimento 63 do CNJ, especificamente por ausência de declaração da clínica atestando o procedimento e os beneficiários.
A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. Para o colegiado, “o procedimento caseiro não regulamentado no ordenamento pátrio impede o acolhimento da pretensão inicial”.
Leia mais: Mães buscam registro de dupla maternidade há dois anos; STJ julga caso de inseminação caseira
Amicus curiae
No STJ, o IBDFAM atuou como amicus curiae em defesa da “pluralidade dos modelos de família, consagrados pelo Direito das Famílias em interpretação às normas e princípios constitucionais, para que não sofram cerceamentos registrais, sob pena de comprometer os princípios da isonomia, não hierarquização das formas constituídas de família, livre planejamento familiar, cidadania, liberdade, não intervenção estatal na vida privada dos cidadãos, busca da felicidade, entre outros”.
Para o Instituto, não há qualquer motivo para obrigar os pais, depois do nascimento, a se socorrerem do Poder Judiciário para que o filho tenha respeitado o seu direito de cidadania. “A possibilidade do registro, mediante comprovação perante o registrador civil da existência da parentalidade socioafetiva, é o que basta”, diz um trecho do pedido.
“Impedir que seja lavrado o registro de nascimento devido à reprodução não ter ocorrido mediante intervenção médica, escancara injustificável limitação a um punhado de princípios constitucionais. Restringe o direito à liberdade e à igualdade. Afronta o respeito à autonomia da vontade e o livre exercício ao planejamento familiar dos pais. Além de excluir do filho o direito à própria identidade, desatende seu direito à convivência familiar, garantia constitucional que lhe é assegurada com absoluta prioridade”, argumenta o IBDFAM.
Por Guilherme Gomes
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