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Mulheres são condenadas por feminicídio; “Quando o amor termina em assassinato, é porque a sociedade anda muito doente”, diz especialista
A Lei do Feminicídio (13.104/2015), em vigor há seis anos, estabelece circunstância qualificadora de homicídio e o inclui no rol dos crimes hediondos, impondo maior rigidez no tratamento contra o autor desse tipo de delito. Nas últimas semanas, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM noticiou dois casos em que mulheres foram condenadas por feminicídio. As decisões estão entre as primeiras neste sentido no país.
A legislação considera o assassinato que envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública detalham que em 2020, ano marcado pelo isolamento social provocado pela pandemia da Covid-19, o Brasil contabilizou 1.350 casos de feminicídio – número 0,7% maior se comparado a 2019.
Para a desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG Alice Birchal, membro do IBDFAM, as decisões recentes demonstram como o Judiciário anda atento e é realmente o poder apto a aplicar a interpretação da lei para que não haja mais vítimas desse tipo de violência. “E nem de nenhum outro tipo, pois sabemos que quando se chega ao feminicídio é porque outros direitos já foram violados durante os anos”, acrescenta.
“Quando o amor termina em assassinato, é porque a sociedade anda muito doente. Principalmente a sociedade brasileira, já que nós somos o terceiro país mais violento do mundo. Essas decisões são importantíssimas para que as pessoas percebam que a Lei Maria da Penha (11.340/2006) é um instrumento jurídico muito forte para coibir a violência contra a mulher”, pontua a especialista.
Decisões inovadoras
Em uma das primeiras sentenças neste sentido do país, a Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, em Minas Gerais, condenou uma mulher pelo feminicídio da companheira. O crime ocorreu em 2017.
Os jurados reconhecerem que ela agiu com meio cruel, agravado por se tratar de violência cometida contra mulher em ambiente doméstico, pela própria condição da vítima de pessoa do sexo feminino. A mulher, cuja defesa está sendo feita pela Defensoria Pública, interpôs recurso de apelação contra a decisão.
A sentença foi proferida em 18 de agosto, com pena fixada em 14 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado. No ato, o juiz aceitou o qualificador de feminicídio e citou trecho do livro “A Lei Maria da Penha na Justiça”, escrito pela vice-presidente do IBDFAM, Maria Berenice Dias:
“Para ser considerada a violência como doméstica, o sujeito ativo tanto pode ser um homem como outra mulher. Basta estar caracterizado o vínculo de relação doméstica, de relação familiar ou de afetividade, pois o legislador deu prioridade à criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, sem importar o gênero do agressor.”.
A acusada, atualmente com 27 anos, foi contemplada com a liberdade provisória, sendo aplicadas medidas cautelares diversas da prisão. Como a ré não foi encontrada para intimação pessoal, ela foi intimada da condenação por edital. Ela poderá aguardar o julgamento da apelação em liberdade, como ocorreu até o júri. Contudo, pode haver requerimento do Ministério Público para decretação da prisão preventiva.
No júri, o Conselho de Sentença reconheceu os termos da pronúncia, que rejeitou a qualificadora de motivo fútil constante da denúncia do Ministério Público do Estado de Minas Gerais – MPMG, recebida em 26 de janeiro de 2018. O MPMG afirmava que, na noite de 14 de maio de 2017, no bairro Cabral, em Contagem, a acusada agrediu e asfixiou a vítima por ciúme, diante de postagens da jovem numa rede social.
Em 18 de novembro de 2019, no entanto, o juiz entendeu que essa descrição não estava de acordo com as provas dos autos, não ficando claro o motivo do desentendimento. Ao ser ouvida pela autoridade policial, a ré alegou que brigou com a parceira e a empurrou, quando esta tentou atingi-la com um pedaço de pau. Ela disse que viu a vítima cair e deixou o local. Meia hora depois, retornou e viu que a namorada estava morta. Essa versão, porém, foi descartada pelo corpo de jurados.
Histórico de violência doméstica
O IBDFAM também noticiou uma decisão do Tribunal do Júri de Santa Maria, no Distrito Federal, que condenou uma mulher pelo feminicídio da companheira, praticado em 2019 na residência em que moravam juntas. A sentença observou histórico de violência doméstica e a pena foi fixada em 18 anos e 9 meses de prisão, em regime inicial fechado, sem a possibilidade de recorrer da sentença em liberdade.
O juiz presidente do júri ressaltou que a ré apresenta conduta social reprovável, já que estabeleceu com a vítima um longo ciclo de violência física, psicológica e patrimonial. O comportamento abusivo era reiterado por episódios relatados nos autos, com a evidente incapacidade de quebra do vínculo emocional por parte da vítima.
Ao dosar a pena após a decisão do júri, o magistrado também observou que família e amigos da vítima se viam impossibilitados de conviver com ela de modo saudável. Havia impotência por parte deles diante do fracasso nas tentativas de resgatar a vítima do domínio psicológico da ré.
“Ressalte-se que tal histórico de violência doméstica encontra-se cabalmente demonstrado, não só nos relatos dos familiares e da testemunha sigilosa, mas também no teor de diversas mensagens trocadas entre a vítima e a ré, no período de cerca de um mês que antecedeu ao fato, extraídas de seu aparelho celular apreendido”, ressaltou.
Construção da jurisprudência.
Alice Birchal ressalta que as decisões têm enorme impacto na construção da jurisprudência. “Os casos vão se repetindo, os juízes vão dando a mesma interpretação, esses casos são levados aos tribunais, os tribunais fazem o julgamentos, até que se chegue a uma maioria de entendimento, para que se aplique realmente a Lei Maria da Penha em um sentido muito mais amplo do que de início nós aplicávamos.”
Essa formação jurídica, segundo a especialista, gera uma mudança comportamental, não só no julgador como nos envolvidos no processo e na sociedade, que fica ciente de que qualquer tipo de feminicídio será punido. “Uma outra questão é do campo de vista científico. Quando se tem esse tipo de decisão, as monografias, os mestrados e os doutorados também são estimulados a trazer novos temas e estudar com profundidade essas decisões.”
“Não conseguimos, neste momento, ter uma dimensão do quanto são importantes essas decisões que agora ampliam a aplicação da Lei Maria da Penha nos crimes relativos às uniões homossexuais. É preciso lembrar que o sistema brasileiro dá toda a proteção à união homossexual, mas ela também tem que responder quando os atos ilícitos são praticados também nos âmbitos das relações homossexuais”.
Ela frisa que utiliza a palavra “homossexual” pois não há que se falar em “relação homoafetiva”, quando se termina em feminicídio, “pelo menos do ponto de vista da autora do crime”.
Competência híbrida
No âmbito do Direito das Famílias, a desembargadora aponta ainda as repercussões para as vítimas indiretas da violência. “Se elas tiverem, por exemplo, um filho ou alguma pessoa que faça parte desse núcleo familiar, por óbvio essa pessoa ficou afetada por essa violência, e pode ter sido durante anos também vítima dessa situação, porque se chegou ao feminicídio é porque essa violência veio se agravando durante os anos.”
Ela defende ainda a existência de uma competência híbrida, que é inclusive prevista pela Lei Maria da Penha, em que o juiz julga, exceto no caso do feminicídio, todo o contexto familiar em que a violência doméstica se insere. “Já passou da hora de consertarmos essas competências em um único juízo. E esse tipo de decisão nos leva a discutir sobre a Lei e a sua repercussão no ordenamento jurídico”, reconhece.
Congresso Nacional do IBDFAM
Alice Birchal ministrará palestra sobre “Competência híbrida e soluções de conflitos domésticos” no primeiro dia do XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões. A abordagem integra o Painel 4, que enfoca a “Violência Doméstica, Gênero e Alienações", na quinta-feira, dia 28 de outubro, das 10h às 11h. A mesa terá Flávia Brandão como presidente e também contará com palestras de Adélia Pessoa e Ana Carolina Madaleno. Confira a programação do evento na íntegra.
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br