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Maria da Penha: "De geração em geração, a violência contra a mulher é reproduzida até hoje"
Há 15 anos, foi sancionada a Lei Maria da Penha (11.340/2006), um marco para o ordenamento jurídico brasileiro que instaurou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Celebrado neste sábado, 7 de agosto, o aniversário da lei que leva o nome da farmacêutica vítima de violência doméstica em 1983 é uma oportunidade não apenas para reconhecer os avanços, mas também apontar os desafios e propor soluções para garantir a, ainda imprecisa, efetivação da norma.
Em entrevista ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Maria da Penha Maia Fernandes afirma que, se o crime cometido contra ela por seu então marido, na década de 1980, tivesse ocorrido no cenário atual, no qual há uma legislação criada para proteger as mulheres, possivelmente ela não teria sofrido uma tentativa de homicídio. “Com o conhecimento que tenho hoje, eu teria tomado uma providência para sair desse relacionamento de maneira segura. Quem sabe até teria pedido a transferência do meu trabalho para outro estado”, reconhece.
A realidade é que o agressor de Maria da Penha, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, só foi levado a julgamento oito anos após a primeira tentativa de feminicídio; um tiro nas costas, enquanto dormia, que a deixou paraplégica. Ele, porém, saiu do fórum em liberdade. Em 1996, no segundo julgamento, foi condenado a 10 anos e seis meses de prisão, mas a sentença não foi cumprida, sob alegação de irregularidades processuais.
Diferentes tipos de violência
Reconhecida pela Organização das Nações Unidas – ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência de gênero, a Lei Maria da Penha considera a existência de diferentes tipos de violência, que podem ser cometidos de forma conjunta ou não, dentro de um contexto de violência doméstica, familiar ou em uma relação íntima de afeto: sexual, psicológica, moral, física e patrimonial.
Para que a lei seja aplicada, é necessário que a vítima seja mulher – o que inclui travestis e mulheres transexuais, uma vez que trata-se de uma identidade de gênero. O agressor, porém, não necessariamente precisa ser homem, já que há a possibilidade de aplicação da lei em casos de agressão de uma mãe contra a filha ou em uma relação homoafetiva.
O tema, segundo Maria da Penha, se tornou ainda mais caro à sociedade brasileira durante a pandemia, que proporcionou maior contato entre o agressor e a vítima e contribuiu para o aumento dos números de agressões domiciliares. “O desemprego comprometeu o relacionamento das pessoas. Se antes já existia violência e essa mulher só se sentia tranquila durante a semana, que era o período no qual tinha pouco contato com o agressor, imagina ter que conviver com ele os sete dias, e com tantos problemas em relação aos filhos, à alimentação e à saúde. É uma convivência muito danosa.”
Integração de serviços
Quinze anos após a promulgação da lei, muitas mulheres ainda são vítimas de violência doméstica e familiar diariamente. Para Maria da Penha, garantir a efetivação da Lei demanda a criação de uma Casa da Mulher Brasileira em cada estado do país – espaço que integra, amplia e articula todos os serviços do governo oferecidos às mulheres em situação de vulnerabilidade.
O objetivo da Casa da Mulher Brasileira é oferecer um atendimento humanizado às vítimas de violência doméstica e evitar que elas precisem buscar atendimento fragmentado em diversos órgãos públicos, o que pode culminar na revitimização. “Lá estão reunidas todas as políticas públicas que fazem com que a lei saia do papel, como a delegacia, Ministério Público, Defensoria Pública, Juizado, e até mesmo brinquedotecas, onde os filhos podem brincar enquanto as mães buscam providências para sair dessa situação”, destaca Maria da Penha.
Outra luta do Instituto Maria da Penha é pela implementação de um Centro de Referência da Mulher nos postos de saúde de todos os municípios brasileiros. “Nos pequenos municípios, o posto de saúde muitas vezes é a única política pública disponível, e é o local onde a mulher vai para cuidar dos seus ferimentos da alma e do corpo. Ao encontrar um Centro de Referência na unidade de saúde, ela poderá ser atendida, tirar suas dúvidas e receber orientações para sair dessa situação que, em muito pouco tempo, pode vitimá-la mortalmente.”
Mudança comportamental
Maria da Penha avalia que uma maior efetivação da lei exige também o aumento do investimento na educação para a conscientização da sociedade. Segundo ela, a falta do investimento em educação é responsável pela reprodução da violência observada vivenciada e aprendida na infância, que, “de geração em geração, é reproduzida até hoje”.
“Os filhos das militantes da minha geração têm entregado para a sociedade homens e mulheres respeitadores dos direitos humanos, pois foram educados em casa nesse sentido. Se esses ensinamentos chegarem à educação formal, para nossas crianças e jovens, teremos a sociedade que queremos, com todas as pessoas se respeitando“, observa.
A falta de conhecimento, segundo ela, também afeta o próprio comportamento das vítimas, que escondem as agressões por medo de retaliações ou mesmo da estigmatização. “Muitas não falam sobre o que ocorreu porque são provenientes dessa cultura de que a mulher que apanha merece. Elas terminam negando a sua própria personalidade e acreditando que o agressor tem razão.”
A farmacêutica lembra que há ainda quem não denuncie por medo de não poder criar os filhos sozinha, por desconhecimento de que existe uma lei, ou mesmo por desconhecimento dos caminhos que devem seguir para acessar essa lei.
“Há ainda o desconhecimento do ciclo da violência ao qual ela está submetida. A vítima precisa entender que este ciclo acontece em quatro etapas: primeiro, há tensão entre o casal; depois, a violência; em seguida, o agressor pede perdão e promete que aquilo não voltará a acontecer e eles têm um período de lua de mel. Após algum tempo o ciclo se reinicia, com a possibilidade de se tornar mais violento”, detalha.
O que falta, segundo Maria da Penha, é o conhecimento de como acontece a violência, como ela se inicia e como se repete. “Sem esse conhecimento, elas ficam sempre acreditando que o agressor vai melhorar, dependendo dele, e achando que não tem solução. E temos solução, mas ela precisa ter conhecimento para saber como achar essa solução.”
Proteção dos direitos
Para quem vivencia, ou já vivenciou, uma situação de violência doméstica e familiar, Maria da Penha indica o telefone 180, que funciona 24 horas e foi criado especialmente para esclarecer as dúvidas da mulher que não é respeitada no seu relacionamento. Destaca ainda a importância de contar com uma amiga que possa se informar e trazer os esclarecimentos necessários, além de acompanhá-la até uma política pública para que ela se sinta mais encorajada.
A farmacêutica ressalta que essa política pública não seria a Delegacia da Mulher, porque a vítima não teria essa coragem nesse primeiro momento. Ela indica o Centro de Referência da Mulher, que é o espaço onde a mulher será atendida por um profissional do serviço social, uma psicóloga e um advogado. “Esses três profissionais vão orientá-la sobre os seus direitos, sobre os riscos e sobre a possibilidade de sair daquela situação. Com essa amiga do lado, a vítima se sente mais fortalecida.”
Quanto aos profissionais do Direito que atuam nessa área, Maria da Penha defende a necessidade de capacitações continuadas e do conhecimento concreto sobre a Lei Maria da Penha. Para ela, aqueles que falham na aplicação da lei devem ser punidos rigorosamente por seus órgãos de classe.
Ouça o Boletim IBDFAM Especial: 15 anos da Lei Maria da Penha no Spotify
Leia, na íntegra, o artigo da vice-presidente do IBDFAM, Maria Berenice Dias, sobre o tema: Há o que comemorar no aniversário de 15 anos da Lei mais popular do Brasil?
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Por Débora Anunciação
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