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Aniversário da Lei Maria da Penha: Mandado de Injunção busca lei específica para homens GBTI+
Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei Maria da Penha (11.340/2006) reúne mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Na semana em que se celebra o aniversário da norma, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM traz a história de quem busca na Justiça a sanção de uma nova lei, de escopo similar, mas voltada à proteção de homens GBTI+.
Tribunais estaduais já proferiram decisões para estender a aplicação da LMP para homens trangêneros e para relações homoafetivas. O assistente social americano Andrew Thomas Cicchetti, membro do IBDFAM, e o advogado Paulo Iotti, também membro do Instituto, buscam no Mandado de Injunção Individual – MI 7442, porém, a criação de uma nova lei, específica para essa população.
O mandado, protocolado em 17 de abril de 2023, reivindica a criação de mecanismos de prevenção, proteção, apoio e recurso a pessoas GBTI+ em relacionamentos homoafetivos. O MI 7442 é acompanhado por um mandado coletivo, MI 7452, feito pela Aliança Nacional LGBTI+ e pela Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas – ABRAFH, elaborado por Paulo Iotti e protocolado em 14 de agosto de 2023. A relatoria é do Ministro Gilmar Mendes, atual decano do Supremo Tribunal Federal – STF.
Coordenador Nacional de Combate à Violência Doméstica contra Pessoas LGBTI+ da ABRAFH, Andrew Thomas Cicchetti afirma que a violência doméstica prospera em meio ao segredo, vergonha e silêncio.
Segundo o especialista, a violência doméstica não prejudica apenas os indivíduos, mas também comunidades e a sociedade em geral.
Violências
Andrew também foi vítima de violência psicológica severa, violência financeira extensa e controle coercitivo em um relacionamento homoafetivo. “Na véspera de Natal de 2021, tive motivos para buscar uma ordem de proteção, pois as ações do meu agressor, após a separação, me deixaram com medo pela minha segurança.”
Na ocasião, ele buscou uma ordem de proteção na Delegacia de Mulheres em Cuiabá, Mato Grosso. “Naquela noite, na delegacia, fui acompanhado por outras duas vítimas aguardando assistência: uma mulher da minha idade e uma jovem que parecia não ter mais de 22 anos.”
A violência doméstica foi constatada com base em evidências, entre elas, mensagens de texto. “No entanto, por ser um homem, ainda que de um segmento vulnerável da sociedade – vulnerabilidade amplificada pelo meu status de imigração – foi negado o meu pedido de ordem de proteção.”
“Desapontado e preocupado comigo mesmo, naquela noite também me perguntei o que acontece com os jovens de 22 anos das masculinidades GBTI+. Sofrer violência do parceiro íntimo é um fator de risco para desenvolver transtornos por uso de álcool e substâncias, contrair HIV, ficar sem teto, tentar suicídio (neste contexto entendido como suicídio forçado ou homicídio por procuração), viver com medo e desenvolver ansiedade, depressão, sintomas relacionados ao TEPT, e até ser vítima de homicídio doméstico, para todas as vítimas, independentemente de gênero ou orientação sexual”, explica.
Segundo Cicchetti, as violências psicológicas, estruturais e culturais vivenciadas por pessoas LGBTI+ são aparentemente invisíveis, essencialmente normalizadas e profundamente arraigadas no tecido da sociedade, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. “Minha primeira experiência de violência foi a homofobia dos meus próprios pais, que eles vivenciaram simplesmente como uma expressão de suas crenças religiosas. Para qualquer um, a nossa era a tradicional família católica americana.”
“A homotransfobia, quando direcionada a crianças e adolescentes, é um tipo de violência mais bem compreendida como abuso infantil. A demanda de uma criança ou adolescente para participar da Terapia de Conversão (Cura Gay), uma forma de tortura psicológica, é um exemplo claro desse tipo de abuso”, pontua.
O americano lembra que a violência vivenciada por ele foi furtiva, sutil, quase normalizada dentro do contexto do relacionamento. “Essa é frequentemente a natureza da violência doméstica, especialmente aquela que não deixa hematomas físicos.”
“Esses tipos de violência só continuarão se não falarmos sobre eles abertamente e com compaixão pelas vítimas sobreviventes. Eu era adolescente durante o início da epidemia de AIDS e acredito muito que o slogan do Act Up ‘silêncio é igual a morte’, mantra usado para combater o estigma, a vergonha e o medo que permearam a epidemia de AIDS, também se aplica à violência doméstica”, diz.
Legislação
Alguns países já contam com legislações contra violência doméstica para proteger pessoas LGBTI+ em contexto de violência doméstica, aponta o assistente social. “A África do Sul foi o primeiro país a aprovar uma legislação, em 1998. Portugal tem proteções contra violência doméstica para a cidadania LGBTI+ desde 2007, os Estados Unidos desde 2013 e Santa Lúcia desde 2022”.
Andrew entende que um projeto de lei responsivo às demandas do MI 7442 e MI 7452 poderia, em teoria, abordar tipos de violência familiar enraizados na homotransfobia. “As taxas de violência de parceiro íntimo sofridas por pessoas de masculinidades GBTI+ são semelhantes às sofridas por nossas irmãs cis-heterossexuais, embora seja um erro heterossexista considerar homens vítimas de violência doméstica como se mulheres fossem, por menosprezar nossa masculinidade e disseminar machismo.”
“Os perpetradores de violência doméstica em relacionamentos homoafetivos LGBTI+ provavelmente empregam táticas baseadas na homotransfobia. Essas táticas podem incluir ‘abuso de identidade’, feito com humilhação e difamação, controle sobre a expressão de identidade de gênero e orientação sexual da vítima, ameaças de revelar a orientação sexual da vítima, e etc. Além disso, uma tática comum é explorar as vulnerabilidades estruturais que existem e impactam a vida e o bem-estar das vítimas LGBTI+”, observa.
O especialista reconhece que a LMP é amplamente considerada uma das melhores leis de violência doméstica do mundo. Com 46 artigos distribuídos em sete títulos, a norma cria mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher de acordo com a Constituição Federal (art. 226, § 8º) e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro (Convenção de Belém do Pará, Pacto de São José da Costa Rica, Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher).
“Apesar das diferentes perspectivas, a estrutura e o escopo da Lei Maria da Penha são um exemplo de política pública cuidadosamente criada e devem servir de modelo para a criação de qualquer legislação adicional projetada para prevenir e combater a violência doméstica de pessoas de masculinidades GBTI+”, observa Andrew.
MI 7442
A ação também pretende garantir a aplicação das medidas protetivas da LMP, por analogia, enquanto a lei específica não é aprovada. “Embora haja decisões que apliquem a lei por analogia para proteger homens em casais homoafetivos, elas são minoritárias, pois a maioria dos Tribunais nega tal proteção. O que reforça, para a ação, a situação de omissão inconstitucional na proteção eficiente a homens GBTI+ em relações homoafetivas.”
O texto ainda critica decisões judiciais que aplicam as medidas protetivas da Lei Maria da Penha para proteger homens em relações heteroafetivas. Para o advogado Paulo Iotti, é “inepto e beira a má-fé aplicar uma lei criada para proteger pessoas de grupos vulneráveis contra violência doméstica a integrantes de grupo hegemônico – no caso, homens em relações com mulheres”.
“A Lei Maria da Penha expressamente afirma proteger casais entre mulheres, ao dizer que se aplica independente de orientação sexual, algo já reafirmado por precedente do Superior Tribunal de Justiça – STJ (HC 413.357/MG). A própria LMP reconhece que a violência doméstica ou intrafamiliar ocorre não só em casais heteroafetivos, mas também nos homoafetivos, e, embora a lei fale em proteção às mulheres, como não há proibição expressa à sua aplicação a homens, é possível a analogia para proteger homens em casais homoafetivos, por serem um grupo vulnerável, como acima mencionado”, avalia.
No entanto, pontua Andrew, para homens em relações heteroafetivas já existe a proteção da legislação geral, ou seja, das medidas cautelares do Código de Processo Penal.
Proteção
Iotti frisa que a ação não tem relação nenhuma com as tentativas de enfraquecer a Lei Maria da Penha. “Muito pelo contrário, reforçamos que a mulher em relação com um homem merece especial proteção do Estado pelo machismo hierárquico-patriarcal que ainda nos assola socialmente.”
“Apenas se pede para compreender que a proteção de casais homoafetivos formados por homens não gera nenhum prejuízo à proteção das mulheres em relações heteroafetivas. Da mesma forma, a proteção de mulheres, cis ou trans, em relações homoafetivas também não o fez.”
Ele acrescenta que a violência doméstica não se limita ao machismo hierárquico-patriarcal de homens contra mulheres, mas em qualquer situação na qual o afeto é deturpado em uma relação de poder e dominação que oprime e subjuga outrem. “A própria LMP reconheceu isso ao determinar sua aplicação a casais de mulheres quando afirma que se aplica independentemente de orientação sexual, como o STJ bem decidiu (HC 413.357/MG)”, ressalta.
“A aplicação da Lei Maria da Penha para proteger homens em relações com outros homens não traz nenhum retrocesso e nenhuma desproteção a mulheres em relações com homens, muito pelo contrário, já que defendemos que as decisões que a aplicam para proteger homens em relações com mulheres são monstruosamente absurdas, teratológicas, e, por isso, inconstitucionais”, conclui.
Maria da Penha
Como parte dos esforços para não enfraquecer a legislação vigente, Andrew entrou em contato com Maria da Penha Maia Fernandez e o Instituto homônimo fundado e presidido por ela.
Em resposta, o Instituto Maria da Penha reconheceu a existência de várias formas de violência contra pessoas GBTI+, e declarou "torcida para que o processo judicial seja bem sucedido, em nome da garantia de direitos e proteção a todos os seres humanos”.
O americano se encontrou com Maria da Penha Maia Fernandez no final de 2023. “Ela é uma verdadeira heroína e transformou seu sofrimento em uma oportunidade de ter ajudado inúmeras vidas de mulheres, por gerações futuras, ou pelo menos até que acabemos com a violência contra as mulheres.”
“Suspeito que sobreviventes de violência doméstica entendam o verdadeiro horror da violência do parceiro íntimo e da família e estejam dispostos a fazer todo o possível para ajudar outras vítimas sobreviventes e combater a violência familiar em todas as suas formas. O apoio do Instituto Maria da Penha é talvez uma comunicação de que a nossa é uma causa nobre e digna. Sou eternamente grato por este apoio”, afirma.
Em 2021, o IBDFAM entrevistou Maria da Penha. Os pontos abordados permanecem atuais e evocam discussões necessárias. Leia a entrevista na íntegra:
Maria da Penha – "De geração em geração, a violência contra a mulher é reproduzida até hoje"
Por Débora Anunciação
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