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Caso Elis Regina: o impacto da inteligência artificial na preservação da memória
À medida que a tecnologia avança, torna-se mais complexo distinguir o real do artificial. Os riscos e as implicações da adulteração, cada vez mais realistas, de fotos, áudios e vídeos são colocados em xeque na contemporaneidade e inflamam o debate sobre preservação da memória e o direito após a morte.
Por meio da ferramenta deepfake, é possível adulterar o rosto de uma pessoa em fotos ou vídeos por meio da inteligência artificial. A tecnologia é usada com frequência para criar vídeos falsos envolvendo celebridades e figuras políticas. A atriz Carrie Fisher, por exemplo, foi recriada digitalmente para aparecer como a jovem Princesa Leia no filme Rogue One: Uma História Star Wars.
O debate aqueceu as redes sociais na última semana, após a divulgação de uma campanha publicitária que “reviveu” a cantora Elis Regina, que morreu na década de 1980, por meio da inteligência artificial. Na produção, a artista dirige uma Kombi e canta Como Nossos Pais, de Belchior, ao lado da filha, Maria Rita.
Enquanto alguns fãs se emocionaram com o dueto, outros levantaram questionamentos éticos sobre a manipulação da imagem de uma pessoa falecida em um contexto fictício.
Essa não é a primeira vez que personalidades são recriadas digitalmente após a morte. Um holograma de Whitney Houston realizou uma turnê oito anos após a morte da cantora.
Na última semana, após ser internada na UTI, a cantora estadunidense Madonna estabeleceu regras que devem ser seguidas após a sua morte. Segundo o jornal britânico The Sun, além de definir critérios de herança, a artista proibiu o uso de hologramas com a sua imagem em shows póstumos.
A medida também foi adotada pelo ator Robin Williams, que morreu em 2014. Em seu testamento, ele impôs uma restrição ao uso de sua imagem por 25 anos para evitar que sua figura fosse reproduzida por meio de hologramas ou outras tecnologias.
Já aprovado pela Câmara dos Deputados, o Marco Legal da Inteligência Artificial (PL 21/2020) estabelece fundamentos, princípios e diretrizes para o desenvolvimento e a aplicação dessa tecnologia no Brasil. A proposta está em análise no Senado Federal.
Posicionamento jurídico
Em atenção aos novos desafios impostos pela Inteligência Artificial, Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão Nacional de Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, aponta a necessidade de posicionamento jurídico, seja para delimitar os limites éticos, seja para coibir a utilização.
No entendimento da especialista, cabe à doutrina tecer as teses para a aplicação do direito posto, ou seja, das regras já existentes, às novas relações que surgem. “Essas teses jurídicas serão defendidas e utilizadas como fundamentação nos Tribunais, que formarão a jurisprudência.”
“Tenho me posicionado no sentido de que os direitos da personalidade, como o direito à imagem, por exemplo, não deixam de existir com a morte – apenas encerram seu desenvolvimento natural – e, por isso, precisam ser respeitados e mantidos em acordo com a vontade do seu titular, tal qual enquanto vivia. Portanto, nada, nem tampouco a tecnologia, pode vilipendiar essa proteção”, frisa.
Direito dos herdeiros
A questão é discutida pela advogada em artigo disponível no portal do IBDFAM. No texto, Patrícia Sanches examina o direito dos herdeiros à exploração do uso da imagem da pessoa falecida e a proteção da imagem – direito fundamental e que não se destaca da personalidade mesmo depois da morte.
A imagem, explica a autora, é resultado de uma construção que se dá durante todo o percurso da vida nas relações sociais, uma parte da história indissociável daquela personalidade.
Patrícia também explica que a inteligência artificial é capaz de reviver a memória projetada no futuro de pessoas já falecidas, criando uma representação da imagem em novas condutas no post mortem. “Isso significa criar um novo cenário onde a pessoa realiza condutas que jamais foram realizadas por ela – a chamada deepfake”.
A diretora nacional do IBDFAM lembra que, antigamente, cabia aos herdeiros apenas permitir (ou não), a divulgação de uma conduta realizada pela pessoa falecida, ou seja, algo que fez parte da história e da construção da imagem daquela pessoa. “No caso da Elis Regina, poderia citar o exemplo de um show que tenha realizado ou uma música que tenha cantado.”
A Inteligência Artificial, porém, é capaz de alterar a perspectiva: “os herdeiros passaram a ter que autorizar (ou não) a utilização da imagem em condutas no post mortem, projetadas no futuro. Condutas que não fizeram parte do histórico de vida da falecida”.
A especialista defende que o direito de exploração da imagem, pertencente aos herdeiros, deve encontrar limites na proteção e na perpetuação daquela imagem que foi construída socialmente pela pessoa.
“Na peça publicitária que foi divulgada recentemente, a imagem da artista foi representada cantando e demonstrando liberdade, o que é condizente com a imagem construída pela Elis Regina. Nesses casos, entendo que os herdeiros podem utilizar do direito que possuem, pois não extrapola a proteção da imagem da pessoa falecida”, opina Patrícia.
Proteção de direitos
Para a presidente da Comissão Nacional de Tecnologia do IBDFAM, os criadores e operadores da tecnologia têm o dever de respeitar os limites éticos-jurídicos que já existem como regras que são. “No entanto, ilicitudes são cometidas diariamente, ainda que delas não se tenha conhecimento.”
Ela aponta a capacidade da IA de criar uma conduta que jamais tenha sido realizada por uma pessoa e que venha a denegrir sua imagem. “Essa criação é contrária ao direito fundamental de proteção da imagem, e não importa se a pessoa é falecida ou não, em razão da projeção dos direitos da personalidade no post mortem.”
“Entendo que a discussão não está no desrespeito ao direito dos herdeiros que, eventualmente, podem não ter autorizado o uso da imagem – e nesse caso, uma ordem judicial a pedido de um deles, pode fazer cessar o uso não autorizado”, pontua.
A discussão, segundo Patrícia, envolve a proteção da imagem da pessoa falecida, ainda que desrespeitada pelos herdeiros. “Imaginemos a hipótese em que os herdeiros permitam a violação da imagem através do uso da IA ao gerar uma conduta desonrosa para a pessoa falecida – a meu ver, estaríamos diante de um abuso de direito.”
“Precisamos estar atentos, pois situações como estas devem ocorrer com mais frequência e gerar dificuldades ainda maiores, diante da acurácia da tecnologia em gerar imagens e vídeos em deepfakes cada vez mais imperceptíveis”, alerta a advogada.
Morte e luto
“O que parecia ser ficção científica, na época da elaboração do Código Civil, tornou-se, no intervalo de duas décadas, realidade palpável para a qual será preciso ressignificar algumas categorias jurídicas para buscar respostas para novos desafios”, observa o advogado Marcos Ehrhardt, vice-presidente da Comissão Nacional de Familia e Tecnologia do IBDFAM.
O especialista lembra que o conceito de morte é associado ao fim de um ciclo ou de uma jornada, enquanto o luto costuma ser associado a uma etapa de transição e mudança, “na qual os que ficam precisam seguir com suas jornadas pessoais e familiares, muitas vezes assumido novos papéis ou reestruturando arranjos familiares”.
Marcos explica que a morte, tradicionalmente, representa o fim de uma existência biológica, que se expressa pelo término de uma atividade cerebral significativa, consoante critérios médico-científicos. No mundo digital, porém, “a presença de alguém, e seu impacto nas relações virtuais, não precisa estar conectado à existência física”.
“A utilização de ferramentas tecnológicas em geral, entre as quais aplicações de inteligência artificial, permite que sigamos presentes digitalmente, mesmo depois de nossa morte natural, vale dizer, biológica”, reconhece.
Ele acrescenta que o cenário não é restrito a condições financeiras privilegiadas ou acesso à tecnologia de ponta, mas sim aplicável a qualquer pessoa que se interesse pelo tema, “dada a multiplicidade de possibilidades de conservação de imagens, textos, vídeos, que podem ser disponibilizadas em serviços específicos ou em redes sociais, das mais variadas plataformas”.
Implicações legais, financeiras e patrimoniais
De acordo com Marcos Ehrhardt, o ponto de partida para o emprego da imagem do falecido (qualquer traço característico que permita sua identificação social, como, por exemplo, a sua voz, jeito de andar etc.) costuma ser a autorização dos herdeiros. “Salvo se, em vida, a pessoa representada pela utilização de IA tenha autorizado tal tipo de iniciativa.”
“A legislação em vigor disciplina a sucessão dos bens patrimoniais do falecido, pois bens de caráter existencial, como direitos de personalidade, são intransmissíveis. Não se pode aplicar, ao caso em análise, a mesma lógica negocial da transmissão de bens materiais que orienta o livro das sucessões em nossa codificação vigente”, pondera.
A constatação, segundo o advogado, exige análise do caso concreto “para verificar se não existe o conflito de interesses entre a exploração da imagem-atributo de alguém para fins econômicos e toda sua biografia, ou seja, sua história de vida, valores, visão de mundo e posicionamento político, entre tantos outros aspectos que integram a construção de nossa personalidade”.
“Precisa-se ressignificar o que se costuma retratar como proteção à memória do falecido, sendo preciso distinguir o rol de herdeiros necessários, daquele dos legitimados a exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade do morto”, avalia o especialista.
Ehrhardt cita o parágrafo único do artigo 12 do CC/02, que assegura legitimidade para requerer qualquer medida protetiva de tais direitos (ou pleitear reparação por perdas e danos) ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Regulamentação
“Se a tecnologia nos proporciona muitas oportunidades, precisamos estar preparados para lidar com seus inerentes desafios”, enfatiza o diretor nacional do IBDFAM.
O advogado entende que, na falta de uma regulamentação específica, é possível fazer uma interpretação prospectiva, “procurando ressignificar os dispositivos previstos na legislação vigente que tutelam os direitos de personalidade, a partir de uma leitura do disposto no artigo 20 do CC/02, com a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento da ADIN 4815, que tratou da possibilidade de publicação de biografias não autorizadas”.
“Desse modo, se a análise do caso concreto demonstrar que, por exemplo, a exposição ou utilização da imagem de uma pessoa falecida lhe atingiu a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, há de se exigir o necessário balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade conferida aos direitos personalíssimos”, conclui.
Por Débora Anunciação
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