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Cinco pontos importantes sobre o enfrentamento da violência de gênero
A violência contra a mulher pode ser entendida como qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, tanto na esfera pública como na privada. Reconhecida pela ONU como uma das três melhores do mundo no enfrentamento à violência de gênero, a legislação brasileira considera a existência de vários tipos de violência.
Ainda assim, muitas vítimas têm dificuldade para identificar comportamentos violentos perpetuados para além da agressão física. O tema ganhou destaque nos últimos dias em razão do relacionamento entre dois participantes do Big Brother Brasil, reality show de maior visibilidade da televisão brasileira.
Em entrevista ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto, explica o ciclo da violência, analisa o contexto atual e aponta a necessidade de políticas públicas para o enfrentamento da temática.
Confira, a seguir, a íntegra da entrevista:
Na sua percepção, quais os principais desafios no enfrentamento da violência de gênero, e como superá-los?
Os estereótipos povoam o imaginário social, tendo como consequência a histórica naturalização das condutas de homens e mulheres, que passam a considerar natural o que resultou de uma cultura plasmada pacientemente pelo tempo. Assim, reproduzimos estes estereótipos e reforçamos a cultura de discriminação e a violência contra a mulher.
A compreensão dos mitos é etapa importante do trabalho de intervenção, pois negligências, omissões e equívocos muitas vezes ocorrem com base nesses estereótipos.
As consequências da violência de gênero são devastadoras não só para as mulheres, mas para toda a família. Vai muito além dos atos violentos e de seus efeitos imediatos, gerando uma reprodução geracional dessa violência.
A violência de gênero é um problema de todos nós, e as intervenções do Estado precisam ir muito além da responsabilização criminal do autor. Sem dúvida, a violência contra a mulher é violência contra a família.
Estudos indicam como se desenvolvem as relações conjugais, especialmente como o poder masculino tem subjugado a mulher. Não cabe neste momento uma análise mais aprofundada, que exige um olhar interdisciplinar. Entretanto, é necessário relativizar o modelo de dominação masculina e vitimização feminina para que se verifique o contexto no qual ocorre a violência.
A mulher não pode ser considerada mera vítima. Ela pode envolver-se em sua própria vitimização, não tendo forças para sair dessa situação, se não tiver apoio. Urge entender a complexidade da violência contra a mulher, dentro de um contexto de uma hierarquia de poder nas relações ainda existentes em pleno século XXI.
Não está muito claro o que significa violência para a mulher, que tipos de comportamentos, acontecimentos cada um dos parceiros/cônjuges nomeia como violência, o que os “outros” nomeiam como violência e como a ideia de limite aparece em contextos marcados pela violência.
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A violência de gênero revela-se, muitas vezes, letal ao fim de um relacionamento. Se a conjugalidade foi construída em uma relação de poder, de dominação e sujeição do outro, como suportar a falência desse modelo?
Em relação ao perfil do autor de violências conjugais, estudos mostram alguns pontos em comum: concepções sexistas; baixa expressão emocional; obsessão pelo controle da mulher; tendência a negar, minimizar e justificar comportamento violento; e pouco ou nenhum antecedente criminal em relação a outros tipos de delitos.
Muitas vezes, operadores de Direito, como magistrados e membros do Ministério Público, ficam irritados quando, na fase processual, a mulher que sofreu a agressão desmente o que disse na polícia, ou fabrica fatos inexistentes para inocentar o parceiro e evitar sua condenação.
Entretanto, é necessário refletir mais profundamente: o que faz com que as vítimas não denunciem situações de violência, ou não sustentem a denúncia? Medo e vergonha são fatores relevantes nesta seara, seja do aumento da violência, da exposição da intimidade, da desvalorização, da culpabilização ou da falta de apoio.
E o que faz com que mulheres permaneçam com homens que as maltratam? Vários fatores interferem nessa difícil decisão situada entre os benefícios da relação e os custos da violência: sentimento de lealdade, amor, apego, dependência econômica e emocional, preocupação com o impacto da denúncia sobre outros membros da família, falta de apoio e ausência de alternativas reais. Além disso, a presença dos mitos culturais, de convicções religiosas e da crença de que conseguirá mudar o parceiro.
Outra questão sempre presente nos vínculos violentos: o autor desse tipo de violência pode mudar? Por que a mulher acredita nessa mudança?
Para melhor compreender esta matéria, faz-se necessário reportar ao ciclo da violência, descrito inicialmente por Lenore Walker:
1. Período de aumento da tensão: a mulher pressente que algo está errado e muitas vezes tenta utilizar uma série de estratégias para acalmar o parceiro, um comportamento condizente com a ideia de que a mulher é capaz de controlar o comportamento violento do homem. Podem ocorrer agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças e destruição de objetos. Nesta fase, a mulher geralmente tenta acalmar seu agressor, mostrando-se dócil e prestativa, acreditando que pode fazer algo para contornar a situação e evitar a explosão, tentando justificar ou se culpabilizando pela conduta agressiva do parceiro.
2. Explosão da violência: quando ocorre um incidente agudo de violência e a tensão atinge seu ponto máximo. Em geral, é quando acontecem os ataques mais graves.
3. Lua de Mel: período de arrependimento e reparação. Nesta fase de reconciliação, o agressor pode demonstrar remorso e prometer amor eterno, implorar por perdão, presentear a parceira e confessar sua culpa e sua paixão. Jura que jamais voltará a agir de forma violenta.
Como superar o ciclo da violência?
Esses ciclos são repetitivos, com uma diminuição gradativa dos intervalos. É importante conhecer o ciclo da violência para ajudar as mulheres a identificá-lo e impedir que ele se reproduza, denunciando a violência, interrompendo o ciclo. Assim, diante do ciclo da violência, um grande desafio é superar a dificuldade e instabilidade das mulheres em situação de violência para denunciar e manter a denúncia.
Outro desafio é a necessidade de os profissionais que atuam no sistema de atendimento e enfrentamento à violência compreenderem que o gênero continua sendo um critério para criar espaços socialmente diferenciados e hierárquicos e que preconceitos e estereótipos ainda estão presentes na sociedade brasileira, sendo que padrões culturais sexistas ainda existem a legitimar a violência contra a mulher. Urge sensibilizar todos os agentes públicos que intervêm nesta seara, de modo a amarrar bem os elos dessa rede, para que as intervenções não sejam apenas pontuais.
Há outros desafios diante da falta de apoio efetivo para as mulheres em situações de violência, no âmbito privado e público, além da incompreensão e resistência de alguns agentes públicos responsáveis pelos atendimentos.
Grande desafio a enfrentar é a criação de programa de atendimento ao homem autor da agressão, que retorna a esta prática, mesmo que em outra família, ocorrendo elevados índices de reincidência específica. Para evitar esse problema, é indispensável a responsabilização do autor da agressão, mediante intervenções psicossociais.
Há ainda a necessidade urgente de medidas de prevenção, compreendendo múltiplas ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas. São necessárias políticas públicas mais consistentes em assistência social e saúde, visando à proteção à mulher e à família.
A própria Lei Maria da Penha (11.340/2006) e leis posteriores indicam várias medidas de prevenção e, entre essas, ações educativas, tanto dentro das escolas como também por meio da mídia – poderoso instrumento na formação de valores.
Sem dúvida, a educação é via indispensável para a mudança de padrões sexistas que permeiam a nossa cultura. Tendo em vista que as próprias normas jurídicas apontam para a premente necessidade de mudar comportamentos – promovendo uma real mudança nos valores sociais baseados nos direitos humanos, com valores éticos, respeito à dignidade da pessoa humana e à diversidade.
O caminho adequado só pode ser construído por meio da educação, com a inserção de uma perspectiva de gênero e raça nos currículos das escolas, de forma transversal e/ou por meio de outras ações ou programas específicos, com a participação efetiva não só dos profissionais que trabalham na área, mas também do Ministério Público, do Poder Judiciário, da IES , Defensoria Pública, entre outros.
Acreditamos que, assim, a educação poderá construir uma cultura de paz e respeito aos direitos das pessoas, para que possamos atingir os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, como prevê a CF/88 (art.3º, I e IV): a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
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Assassinatos que envolvem violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher, têm-se tornado uma realidade diária no Brasil. Lançado em dezembro, o relatório Violência contra Meninas e Mulheres, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revelou que os casos de feminicídio aumentaram no último ano. O que o aumento nos casos diz sobre as relações contemporâneas?
O feminicídio não é um ato isolado. É a culminância de um processo de violência de gênero que assume várias molduras, expressando-se por diversas formas que não se excluem mutuamente (moral, psicológica, patrimonial, sexual e física), crescendo em gravidade até chegar ao evento letal – se atitudes de enfrentamento não forem tomadas, tempestivamente.
Sem dúvida, um fenômeno complexo, de múltiplas causas. Não é possível simplismo nessa matéria, pois o agressor não está sozinho. Ele faz parte de um sistema e vive em uma cultura que historicamente inferiorizou o feminino.
Essa mulher em situação de violência é um sujeito, e não um objeto passível de posse pelo outro que se acha seu dono. É necessário que as mulheres e os homens tenham consciência dos diferentes estereótipos sexuais e dos papéis limitadores que naturalizam a violência, permeada por distorções e omissões.
Contamos no Brasil com um grande número de normas jurídicas que indicam alternativas viáveis para o enfrentamento da violência, além das oriundas do Direito internacional. Vários tratados internacionais ratificados pelo Brasil, incorporados, portanto, ao Direito pátrio, comprometem o Estado brasileiro a garantir e efetivar esses direitos para todas as mulheres.
Lembramos que o Brasil já ratificou convenções internacionais como a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (ONU,1979) e a chamada Convenção de Belém do Pará (OEA,1994), Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, entre outras, o que significa a incorporação de tais normativas ao Direito brasileiro.
A ONU lançou, em 2015, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030, a que o Brasil aderiu. Entre eles, o ODS 5: alcançar a igualdade de gênero e empoderar as mulheres.
Isso passa necessariamente pelo direito de a mulher viver sem violência e ter em sua família um locus de paz, e não o medo de que sua casa seja o lugar mais inseguro para milhares de mulheres, como vem acontecendo no Brasil.
O desafio maior é a participação ativa de todos, inclusive do Poder Público em todas as esferas. Com razão, a então diretora-executiva da ONU Mulheres que, em março de 2015, disse: “Se os líderes mundiais fizerem da igualdade de gênero sua prioridade e cumprirem a promessa feita há 20 anos, será possível atingir o objetivo até 2030”.
Na época da Constituinte, pugnavam vários movimentos sociais pelo expresso reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, na Lei Maior, tendo a Constituição de 1988 acolhido, em inúmeros artigos essa igualdade (arts 5º, 7º, 226 etc). Leis várias foram editadas para reconhecer a igualdade e enfrentar a discriminação. É preciso repetir que a maior discriminação é exatamente a violência de gênero.
A Constituição de 1988 tem enorme influência na história dos direitos da mulher brasileira. Em seu artigo 226 § 8º, estabelece que o Estado deve criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.
Em agosto de 2006, foi sancionada a Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, visando fomentar a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa Lei, regulamentando o § 8º do art. 226 da Constituição de 1988, inovou no cenário jurídico brasileiro ao disciplinar a proteção integral à mulher em situação de violência doméstica e representou um novo capítulo na luta pelo fim da violência de gênero. Com efeito, prevê o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres em três eixos: proteção e assistência; prevenção e educação; combate e responsabilização.
O Governo Federal, em abril de 2016, publicou as Diretrizes Nacionais para investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (feminicídios), resultado do processo de adaptação do Modelo de Protocolo latino-americano para investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero à realidade social, cultural, política e jurídica no Brasil – instrumento relevante a ser implementado.
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Como o Poder Público deve atuar para garantir a efetiva proteção das mulheres?
O que buscamos, hoje, é a concretização do direito já positivado em vários instrumentos normativos e a sua efetivação em nosso viver social. Que as leis não estejam apenas na vitrine, a ostentar um dever ser para o futuro.
As políticas públicas são essenciais e estão previstas no Direito brasileiro. Entretanto, da norma à concretização vai uma longa distância.
O que é urgente não é o endurecimento das penas, é a prevenção. São as políticas públicas que já estão previstas, mas não foram suficientemente efetivadas. Precisamos de que a lei deixe de ser um comando para o futuro que não chega ou que demore tanto a se concretizar.
Hoje, a nossa pauta é: a igualdade entre homens e mulheres há de ser construída, o direito de a mulher viver sem violência há de ser concretizado no viver social.
Avançamos muito, sem dúvida. Contudo, o caminho a percorrer é longo. É urgente dar visibilidade à violência, a pior espécie de discriminação de gênero, como uma questão a ser enfrentada nos direitos humanos, repetindo-se sempre: a violência e discriminação contra a mulher são um problema de todos nós. Sabemos que a defesa dos direitos humanos, o respeito aos direitos humanos é tarefa que deve ser construída, dia a dia, no quotidiano de todos nós.
Em todos os debates e reflexões que tratam da violência à mulher, a violência doméstica apresenta-se com extrema relevância, desafiando a todos quanto à persistência nos seus índices de crescimento, obrigando o Poder Público, formuladores de políticas públicas a debruçarem-se sobre o significativo problema, em busca de alternativas que possam minimizar, reduzir e, se possível, solucionar os altos índices de morbidade e mortalidade decorrentes desse tipo de violência.
Todas as discussões em face do tema perpassam a necessidade do esforço conjunto e engajado de vários atores sociais, especialmente da família, da sociedade e do Poder Público. Todos, indistintamente, precisam dar parcela significativa de vontade e de trabalho dedicado, a fim de contribuir efetivamente com a proteção à dignidade da mulher, direito à vida e integridade física, moral, psicológica e sexual que estão sendo cotidianamente vilipendiados.
As raízes que estruturam a cultura da discriminação/violência de gênero remontam à história da própria humanidade e sua mudança implica desafios também estruturais. Requerem reconstrução de valores, políticas públicas consistentes, redes de atendimento articuladas, formação profissional continuada dos agentes públicos que atuam em atendimento às mulheres em situação de violência.
Necessária, principalmente, a sensibilidade social de todos os grupos sociais que tenham consciência política de sua humanidade e pretendam uma sociedade mais próxima do justo e da solidariedade, respaldada no respeito aos direitos humanos. Por tudo isso, as leis não bastam!
Por Débora Anunciação
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