Direito de Família na Mídia
Paternidade em xeque
25/04/2011 Fonte: Estado de MinasDurante várias anos, ele acreditou que P. fosse sua filha, mas diante da tumultuada relação com a ex-mulher decidiu fazer o teste. Entretanto, não ser o pai biológico de P.não alterou em nada legalmente a vida do engenheiro. Ele propôs uma ação de negativa de paternidade recusada pela Justiça. Para o juiz Newton Teixeira de Carvalho, da 1ª Vara de Família, ainda que PC não tenha vínculo biológico com P., a relação entre eles é baseada no afeto e, desde o novo Código Civil, o que deve prevalecer é a paternidade socioafetiva.
A decisão revoltou PC, que diz não ter, já há algum tempo, qualquer tipo de vínculo afetivo com a filha, que ele registrou como sua, sem saber da alegada traição. "Minha ex-mulher minou nossa relação com acusações contra mim e, por isso, eu e minha família deixamos de conviver com P. Hoje, só consigo sentir raiva de ter que responder por uma pessoa com quem não tenho qualquer relacionamento. O que se manteve foi apenas o vínculo financeiro." O engenheiro atribui ainda à alta pensão o fim de sua carreira de executivo de sucesso na área de telecomunicações. Com valor tão alto descontado em folha, PC foi demitido e não conseguiu mais se reerguer. Chegou até a deixar de pagar os valores a P. e foi preso, por força de um processo que correu à revelia, mesmo depois de fazer acordos anteriores para quitar a dívida. "Fui humilhando e foi na cadeia que fiz um retrospecto de minha vida e decidi pedir o exame de DNA, que confirmou a traição", conta.
À BRASILEIRA A tese que PC diz não se encaixar em sua realidade, na verdade, é um invenção brasileira, nascida em Minas Gerais, para atender ao novo padrão das relações familiares no país, na visão do presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDF), Rodrigo da Cunha Peixoto. Quem lançou a ideia foi o advogado João Batista Vilela, no artigo "Desbiologização da paternidade",publicado na Revista da Faculdade de Direito, em 1979. Uma revolução no conceito de pai que, de acordo com Rodrigo da Cunha, já rompeu as fronteiras brasileiras e está se espalhando por todo o mundo. "A paternidade socioafetiva se sustenta na tese de que paternidade e maternidade são funções exercidas e não naturais", explica Cunha. Esse entendimento, afirma, fez com que surgisse uma diferenciação entre pai e genitor, que vem sendo amplamente aplicada no direito de família também pelos tribunais superiores.
Indiferente à polêmica, PC não acha justo ser condenado, especialmente, como afirma, depois de ser induzido a erro pela ex-mulher, ao registrar a criança, nascida em 1976, como filha. "Ela me enganou, não contou a verdade. Mentiu. Como poderia não registrar a criança?", questiona. No desespero, ele defende que é preciso organizar um "movimento, já que a paternidade é hipótese. Assim como tem o teste do pezinho, todos os filhos de pais casados, ao nascerem, devem ser obrigados a fazer o exame de DNA. Só assim poderemos ter prova que registramos filhos não biológicos por livre e espontânea vontade", desabafa. Segundo o engenheiro, da relação com a suposta filha não restou nada, qualquer afeto, desfeito por mais de seis anos de ausência de convívio. "É a prisão perpétua que este magistrado está me impondo. Agora, eu terei que conviver e gostar da menina, que não é minha filha. Há anos não mais convivo com ela como pai e filha", destaca.
Para juiz, medida protege a filha
O juiz da 1ª Vara de Família, Newton Teixeira de Carvalho, autor da sentença, disse que reconhecer a existência de paternidade socioafetiva entre PC e P. é proteger os interesses da filha, que manteve, durante 35 anos, um relacionamento com o engenheiro e, de um momento para outro, deixa de ter aquela referência paterna. "Não se pode simplesmente dizer não quero mais. Foram anos passeando publicamente, convivendo, que o vínculo está estabelecido", sustenta o magistrado.
Na sentença, ele afirmou: "O requerente alega que agiu por erro essencial ao proceder o registro de nascimento da requerente. Já a requerida refuta tal argumento, alegando que o requerido registrou a criança por livre e espontânea vontade. Contudo, o autor não logrou êxito em comprovar o alegado vício do consentimento e tampouco comprovou que não há vínculo afetivo entre as partes."
PC se revolta ainda mais quando compara seu caso ao do garoto americano Sean Goldman, hoje com 11 anos, que, depois de viver por nove anos no Brasil, com o padrasto, o renomado advogado João Paulo Lins e Silva, foi devolvido ao pai biológico, David Goldman.A Justiça negou a ele a paternidade socioafetiva com o enteado, criado por ele desde 2004. "Ele queria o filho e a Justiça brasileira considerou que o vínculo biológico deveria prevalecer. Por que eu, que não quero esse vínculo afetivo e não tenho vínculo biológico, devo conviver com esse imposição?", compara. Sean Goldman nasceu em Nova Jersey, em 2000, fruto do casamento da brasileira Bruna Bianchi com Goldman. Em 2004, ele foi trazido para o Brasil sem a autorização paterna, quando se iniciou uma batalha judicial, finalizada em 2009 (um ano após a morte da mãe, por complicações num parto), com a devolução do garoto ao pai biológico. PC já recorreu da sentença ao Tribunal de Justiça e torce muito pela reforma da decisão de primeira instância.
DUAS VISÕES
"PAI, E NÃO GENITOR"
"É uma revolta muito grande para um pai a descoberta de que foi traído, foi enganado. Mas como depois de 30 anos, simplesmente, se diz a uma pessoa que aquele que ela considerada seu pai não émais? Durante anos, ele aceitou com naturalidade essa paternidade. Seu casamento acabou, mas se estabeleceram entre os membros daquele núcleo afetos que não podem ser desfeitos. Esse é o risco inerente à paternidade. É verdade que o afeto não pode ser imposto, mas é possível fazer um pensamento inverso. Se não houvesse o conteúdo econômico nesta obrigação, será que esse pai se preocuparia em retirar a paternidade? Dentro da nova visão do direito, ele pode não ser genitor, mas é o pai. Se um dia ela se interessar em saber qual seu pai biológico, isso não vai gerar necessariamente a sua destituição. Hoje, o que temos são famíliasmosaico, com relações se entrelaçando cada vez mais, se distanciando do modelo tradicional: pai, mãe, filhos e união insolúvel."
RODRIGO DA CUNHA PEREIRA
Advogado e presidente do Instituto
BrasileirodeDireito de Família
"AFETO NÃO SE IMPÕE"
"A paternidade socioafetiva não pode ser imposta àquele que não a quer, simplesmente porque afeto não pode ser imposto pela Justiça. Na verdade, quando se obriga um pai a arcar com alimento para uma filha que ele não reconhece, o que se estabelece é uma relação sociofinanceira. Em uma audiência em que se discutia a imposição desta tese a um pai, o adolescente envolvido na queda de braço não teve dúvida e disse à mãe: 'Por favor, eu não sou um comércio.' Acredito que o laço afetivo pode se estabelecer ou não, independentemente da vontade alheia, e a imposição pode trazer estragos irreparáveis para aqueles que estão envolvidos neste conflito. Imagine uma pessoa que não é pai e chega a ficar privado de sua liberdade em razão deste compromisso. Isso é um constrangimento sem fim. Além disso, todos sabemos que, por maior que seja a pensão alimentícia, o amor não está à venda. Tenho certeza de que o Superior Tribunal de Justiça vai reformar a decisão da Justiça de 1ª instância."
ROSAWERNECK
Advogada de família há 22 anos