Notícias
Dica IBDFAM: Novo romance de Marcela Dantés, João Maria Matilde fala de herança familiar e narra busca por ascendência paterna
Em João Maria Matilde, a escritora mineira Marcela Dantés fala de herança familiar e busca por ascendência paterna. A história é sobre uma mulher que, aos 40, descobre a identidade do pai, um português já morto que deixou um testamento a ser lido com data e hora marcada em uma pequena vila além-mar.
É o segundo romance lançado por Marcela Dantés, que, no ano passado, foi indicada ao prêmio Jabuti por Nem Sinal de Asas. Com a nova história, ela segue investindo em temas que a instigam, como a saúde mental, e também dá continuidade ao protagonismo feminino, com personagens fortes e reais, com falhas e contradições.
Na ida a Portugal, a protagonista Matilde enfrenta seus maiores medos, delírios e a síndrome do pânico. “A mente humana tem caminhos muito complexos que ainda nem fazemos ideia. Penso que essas fragilidades mentais nos dão pistas desses caminhos e do alcance da nossa mente”, comenta Marcela.
Em sua escrita, a autora busca representar um feminino real, fugindo da romantização. “A mulher é uma fonte de beleza em vários níveis”, opina, ponderando em seguida: “Ainda existe um incômodo em falar isso, que a mulher é resiliente, forte, se reinventa, porque não sei se são características positivas. São coisas que nos são impostas. Se não formos assim, não sobrevivemos”.
Leia a íntegra da entrevista de Marcela Dantés para o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM:
O que te inspirou a escrever João Maria Matilde, livro que tem a família como ponto central?
A ideia de um livro sempre surge de vários lugares. De algumas referências, obsessões, coisas que talvez estejam meio escondidas e de repente se juntam. Quando nos damos conta, temos um livro nascendo. João Maria Matilde, especificamente, nasceu quando eu estava em Portugal, para uma residência literária. Passei três meses em Óbidos, e o propósito do programa era justamente escrever um romance.
Fui para lá sem saber o que escreveria, sem nenhuma ideia. Quando cheguei, fiquei muito tocada por essa questão da herança, da família, do vínculo inegável que temos com Portugal. Não conhecia o país, foi a minha primeira vez lá. Foi algo que me tocou muito profundamente. Eu me vi pensando constantemente sobre herança familiar, passado, vínculos e afetos. Quando me dei conta, estava muito claro que o meu romance tinha que vir disso.
Foi uma construção focada nessas relações e em todos os sentimentos, alegrias, durezas que vão se amarrando em volta desses laços fundamentais para a nossa constituição. Toda a construção das personagens perpassa as relações familiares, que são originais e fundamentais. Foi basicamente assim que a ideia do livro apareceu. E queria construir uma narrativa que pudesse unir esses dois países, de alguma forma que fosse muito visceral e definitiva. Para mim, isso tem sempre que passar pela família.
O romance fala sobre heranças familiares. Para você, em que medida a parentalidade define a existência de um indivíduo?
Nossos vínculos e as nossas vivências com os nossos pais são determinantes na nossa formação. Isso é muito claro para mim. Cada um de nós é uma pessoa, tem sua própria personalidade, suas características e seus traços. Agora, sendo mãe – estou com um filho de quase três anos –, vejo isso claramente. É uma personalidade se formando – ou se mostrando, porque talvez já tenha nascido com ele –, mas que começa a se manifestar. São traços muito particulares que vêm conosco e que desenvolvemos a partir de uma série de aspectos da vida, não só a parentalidade.
Também muito mexida com a maternidade que tenho vivido agora, acredito muito nesses laços familiares, na forma como observamos os nossos pais e como eles constroem a nossa vida, qual o conceito de lar para cada família, como elas se configuram e se organizam, se ajudam e, às vezes, se atrapalham… Tudo isso é fundamental na nossa composição. Penso assim pela minha experiência como filha e mãe, mas também observando as outras pessoas.
Acho muito bonita toda essa questão: até que ponto o vínculo com a família é um vínculo definitivo? É tão bonito criar e manter vínculos com essas pessoas que estão do nosso lado desde o começo da nossa formação, com quem evoluímos e crescemos junto, com quem erramos e aprendemos. Obviamente existem exceções, relações tóxicas e complicadas, abandonos. Assim como uma experiência positiva de parentalidade, essas situações também marcam o indivíduo profundamente e podem trazer consequências para sempre.
O abandono paterno e o desconhecimento da identidade do pai são comuns no Brasil. O que isso diz sobre a nossa sociedade, na sua opinião?
Na história de João Maria Matilde, esse desconhecimento foi uma opção, por uma série de fatores, mas não houve um abandono intencional. O abandono paterno é uma realidade constante, absurda e, me arrisco a dizer sem nenhum dado, que é também crescente. Só vejo aumentar a quantidade de mulheres que são mães solo e de filhos que não têm a presença do pai em sua vida. Pensando em termos mais modernos, hoje vemos muito os “pais de Instagram”, que é aquele homem que passa 15 minutos por semana com o filho e constrói na rede social uma narrativa totalmente descolada da realidade.
Essa é uma consequência do patriarcado do machismo. Na nossa sociedade, a responsabilidade do filho é sempre da mulher. Ao contrário do pai, a mãe nunca pode ir embora. Quando isso acontece, há um peso muito maior, uma dimensão que beira ao absurdo. É uma carga, mais uma das tarefas que as mulheres absorvem. Não falo só da da carga física, de estar ali todos os dias, de prover sustento, educação, carinho e afeto, mas também tudo que vem por trás disso: toda carga mental, responsabilidades, acúmulo de funções, jornadas triplas, quádruplas, cobranças, julgamentos…
A sociedade definiu que a criação dos filhos é responsabilidade das mulheres, que engravidam e devem dar conta de tudo que vem depois. A falta que um pai faz na criação, nesses contextos de abandono, é muito grande. Esse modelo tenta amenizar ou colocar panos quentes em um mecanismo meio torto de valorizar a mulher, de colocá-la como uma super-heroína por “ser pai e mãe” de seu filho. Isso simplesmente não deveria acontecer. É muito cruel colocar mais uma responsabilidade na mulher.
O feminino tem força nas suas histórias, como no seu primeiro romance, Nem Sinal de Asas. Quais mulheres você busca apresentar na sua literatura?
Esse tema é muito caro para mim. Construir mulheres que sejam personagens fortes, contraditórias, frágeis em outros momentos, que inspirem, despertem sentimentos, afeto, frustração ou indignação. Quero mostrar mulheres reais, com toda a carga de serem mulheres, para o bem e para o mal. Com toda a força que elas têm, também são frágeis, fazem besteiras, erram, se sentem inseguras. São inspiradas por mulheres reais. É isso que tento trazer para a literatura.
A mulher é uma fonte de beleza em vários níveis. E, como eu disse anteriormente, ainda existe um incômodo em falar isso, que a mulher é resiliente, forte, se reinventa, porque não sei se são características positivas. São coisas que nos são impostas. Se não formos assim, não sobrevivemos. Isso tudo nasce de uma injustiça. Não me sinto em um lugar muito confortável exaltando essas características, mas, de certa forma, são essas as características que nos representam.
Seu próximo projeto é o romance Vazios, que trará uma abordagem sobre saúde mental e loucura. Esse é um tema que te instiga?
As doenças mentais e as fragilidades psicológicas e psiquiátricas me interessam muito. De alguma forma, são temas que estão em todos os trabalhos que eu produzi até agora, desde meu primeiro livro, uma coletânea de contos, Sobre Pessoas Normais, quanto em Nem Sinal de Asas, e agora em João Maria Matilde. Todos esses livros passam por essa questão da saúde mental, que de alguma forma é uma obsessão minha e me interessa.
A mente humana tem caminhos muito complexos que ainda nem fazemos ideia. Penso que essas fragilidades mentais nos dão pistas desses caminhos e do alcance da nossa mente. Acho fascinante a forma como a mente pode funcionar fora desse caminho padrão já desenhado, definido como o funcionamento correto da mente. Esses desvios me encantam, e eu tento sempre trabalhá-los de alguma forma na literatura.
JOÃO MARIA MATILDE
Romance. Autora: Marcela Dantés. Editora: Autêntica Contemporânea. Saiba mais.
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br