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Mês da Adoção: especialistas do IBDFAM analisam desvinculação de crianças adotadas
Recusas e desvinculações em processos de adoção ocorrem mais reiteradamente com crianças que já não se encontram mais na primeira infância. É o que revela o relatório “Destituição do Poder Familiar e Adoção de Crianças”, divulgado recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
O levantamento analisou, entre outros aspectos, as recusas e desvinculações por parte dos pretendentes no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA. Para isso, considerou todos os pretendentes já habilitados, aptos ou não à adoção no país.
Conforme o relatório, feito em parceria com o Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento Social – PNUD, foi constatada a presença de 12.252 registros de ocorrências relacionadas a recusas, desvinculações e desistências em relação a crianças.
As ocorrências podem se referir ao mesmo pretendente e à mesma criança mais de uma vez. Há um número maior de desistências para o grupo de crianças com idade máxima superior a seis anos, por exemplo. Leia a íntegra do relatório.
Reparação civil
Segundo o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira, “devolver” uma criança em vias de adoção, como no estágio de convivência, caracteriza-se uma quase “desadoção”. “Seja qual for o motivo, os pretensos adotantes devem se responsabilizar por isto, afinal foi exercido, ainda que por um curto período, as funções de pais, mesmo que ‘provisórios’.”
“A expectativa da criança e do adolescente de ter uma família, criada no estágio de convivência, e a perda da chance de tê-la, pode ser fonte de reparação civil. Ainda que isso não apague os transtornos deixados na criança, que podem ser indeléveis, contribui com o sustento e com a psicoterapia para lidar com o impacto da ‘devolução’”, avalia o especialista.
Segundo Rodrigo, a desvinculação remete a um lugar de objeto, e não de sujeito. Ele afirma que a intenção da adoção que não se concretizou com o estágio de convivência pode ser fonte de responsabilidade civil, “muito mais deverão ser responsabilizados aqueles que já haviam concretizado a adoção e, após a sentença, querem ‘devolver’ o filho, ou seja, ‘desadotá-lo’.”
“As situações de rompimento de vínculo com as crianças, mesmo no estágio de convivência, cuja função é mesmo de teste, é traumática para quem tinha a expectativa pretendida de ser filho, e perdeu aquela chance de sê-lo. Pode até ser que a criança encontre outra família que será melhor para ela. Mesmo assim, ela ficará marcada psiquicamente para sempre”, explica o advogado.
O especialista conclui: “Afinal, a criança estará diante do pior sentimento que um ser humano pode experimentar: a rejeição. Neste caso, o seu sentimento de desamparo é duplo, pois será a segunda vez que alguém não a quis como filho”.
Sequelas emocionais
Segundo a advogada Fernanda Barretto, presidente do IBDFAM seção Bahia, o termo “devolução”, ainda que seja popularmente empregado, não é correto. “Crianças e adolescentes não são objetos para que você pegue e devolva.”
A especialista também pontua que, juridicamente, o termo só cabe para situações em que a criança ou adolescente esteja em processo de adoção ainda não concluído, ou seja, sem o trânsito em julgado da sentença que defere a adoção. “Se o processo já foi concluído, não cabe mais se cogitar a ‘devolução’ da criança, pois já é um filho(a).”
“Neste cenário, essa criança já é um filho(a) do casal, ou do adotante solteiro, e isso não se desfaz. Seria, possivelmente, abandono de incapaz, que pode ser tipificado penalmente”, explica Fernanda Barretto.
De acordo com a advogada, há impactos severos no desenvolvimento infantil nos casos em que os adotantes interrompem o processo de adoção e a criança volta a ser institucionalizada. “Uma criança ou um adolescente em processo de adoção é alguém que já vivenciou uma rejeição inicial – a da família biológica.”
“Seja por qualquer razão que essa rejeição tenha acontecido, já houve um primeiro não acolhimento afetivo dessa criança pela família. Ela foi entregue e passou pela experiência de não viver o cuidado, amor, e criação inicial pela sua família biológica”, aponta a especialista.
Ela complementa: “Quando a criança é ‘devolvida’, ela revive esses traumas. Isso gera insegurança, desconfiança com relação a um novo possível processo de adoção, e medo de novas rejeições”.
Fernanda ressalta que, neste cenário, o infante tende a se fechar ainda mais para uma nova possibilidade de adoção. “É uma criança que, muitas vezes, desenvolve traumas severos e reflexos emocionais e físicos em função dessa rejeição.”
A advogada cita relatos de crianças que apresentam síndrome de ansiedade, enurese noturna, dificuldade de aprendizado ou desenvolvimento escolar ruim. “São várias as sequelas emocionais ou até físicas decorrentes de reviver um trauma de rejeição.”
Desvinculação
Estudos indicam, ressalta Fernanda Barretto, que a dificuldade de adaptação e a quebra da visão idealizada da filiação são motivos comumente alegados para a desvinculação. “Muitos têm o intuito de adotar uma criança que poderá ser moldada exatamente conforme suas pretensões e desejos. Contudo, crianças que passam por processo de adoção, assim como filhos biológicos, são seres humanos, e não são moldáveis.”
“Uma criança que passou por um processo de adoção tende a ter questões emocionais que aquela que se manteve no seio da sua família biológica muitas vezes não tem. É importante que haja uma desconstrução dessa idealização”, avalia a especialista.
Fernanda percebe a necessidade da busca de informações pelos adotantes, para viver o processo de adoção de forma aberta e não idealizada. “É importante ter a paciência necessária, e reafirmar o afeto pela criança o tempo inteiro, a partir de frases como: ‘Você é meu filho(a), você está comigo, você está seguro(a), a gente te ama, e nós somos sua família’.”
De acordo com a advogada, o Estado deve reforçar a necessidade da preparação para adoção. Ela defende que o estágio de convivência seja acompanhado pela equipe multidisciplinar que vai assessorar psicologicamente, moralmente e emocionalmente a família que recebe essa criança, “para que a adoção aconteça com clareza, transparência e com expectativas reais e alinhadas”.
“E não nesse mundo idealizado em que se sonha um determinado filho e que se quer encaixar a criança adotada nesse ideal que não é viável. Pessoas são pessoas, com suas próprias características e personalidades. Ainda mais pessoas que vêm com uma história pregressa que já passou por uma rejeição”, acrescenta a advogada.
Ela lembra que têm ocorrido condenações judiciais por danos morais e materiais de pais e mães que se desvincularam de crianças ou adolescentes em processo de adoção. “O reconhecimento da possível indenizabilidade também pode, em alguma medida, contribuir para que o processo de adoção seja feito com responsabilidade afetiva, emocional, moral e material daqueles que se predispõem a adotar.”
“O reconhecimento de que a ‘devolução’ pode causar danos indenizáveis manda o recado de que o processo de adoção deve ser feito com base na transparência, abertura e responsabilidade. Do contrário, pode gerar danos considerados indenizáveis pelo Judiciário”, conclui a especialista.
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