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Refugiada que morreu vítima da Covid-19 é reconhecida como mãe de filho que teve com a companheira
A Justiça de Santa Catarina reconheceu a dupla maternidade de um bebê, filho de duas refugiadas venezuelanas – uma delas, a mãe socioafetiva, companheira da genitora biológica, morreu vítima da Covid-19. No registro da criança, passarão a constar o nome das duas mães e dos avós, bem como seus sobrenomes. A decisão é da Vara de Pinhalzinho, no interior do Estado.
De acordo com os autos, as venezuelanas viveram juntas por oito anos e passaram a residir no Brasil em 2018, como refugiadas. Em Roraima, conseguiram decisão judicial que reconheceu a união estável. Depois, mudaram-se para Santa Catarina, onde encontraram doador voluntário para realizar o procedimento de inseminação artificial caseira, em razão do alto custo da reprodução artificial. O bebê nasceu prematuro em julho de 2021.
No período de internação da criança na Unidade de Terapia Intensiva – UTI, as duas mulheres foram diagnosticadas com Covid-19. Por desenvolver complicações da doença, a mãe socioafetiva morreu em outubro de 2021. Na Justiça, o bebê foi representado por sua mãe biológica, que pleiteou o reconhecimento da dupla maternidade com direitos sucessórios relativos à sua mãe afetiva.
Desmistificar a supremacia da consanguinidade
O juiz responsável pelo caso, Caio Lemgruber Taborda, destacou que, segundo o artigo 226, § 7º, da Constituição Federal, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos para o exercício desse direito. Ele também pontuou que os conceitos de paternidade e maternidade vêm “experimentando notável evolução nos últimos anos”.
“Hoje, temos por bem dar valor ao sentimento, à afeição, ao amor da verdadeira paternidade/maternidade, não sobrepujar a origem biológica do filho e desmistificar a supremacia da consanguinidade, visto que a família afetiva foi constitucionalmente reconhecida e não há motivos para os operários do direito, que se rotulam como biologistas, oporem resistência à filiação sociológica”, destacou Taborda.
Segundo o magistrado, o reconhecimento da dupla maternidade preserva o melhor interesse da criança, pois assegura os direitos decorrentes da filiação. Ele também determinou a inclusão do estado civil "convivente" no registro de óbito da mãe socioafetiva, dando conta da união estável estabelecida com a companheira. O processo corre em segredo de Justiça.
Decisão tem certo ineditismo, segundo advogada
A advogada Juliana de Oliveira, que atua no caso, diz que a decisão é um tanto inédita no país. “O objetivo do processo era o reconhecimento de dupla maternidade post mortem, a fim de incluir a mãe afetiva no registro de nascimento do filho e na certidão de óbito da genitora, para fins de ter o bebê reconhecidos os seus direitos sucessórios e previdenciários. Em nossas pesquisas não conseguimos identificar caso semelhante de reconhecimento de dupla maternidade afetiva post mortem decorrente de inseminação caseira.”
Segundo Juliana, o reconhecimento da dupla maternidade post mortem somente foi possível por meio de demanda judicial, pois, na esfera administrativa, o cartório onde foi registrado o óbito negou-se a registrar a dupla maternidade, por ser post mortem, bem como constar a informação de que o estado civil da falecida era “convivente”.
O fato de as mães terem outra nacionalidade não trouxe barreiras para o seguimento da ação, segundo a advogada. “O fato de elas serem venezuelanas refugiadas no Brasil não trouxe empecilhos para o seguimento da ação, que foi protocolada em 16 de dezembro de 2021 e teve sentença prolatada em 27 de abril de 2022. Acredito que, em razão de o mundo estar cada vez mais globalizado, o Poder Judiciário está tentando se adaptar a esta globalização e aos mais diferentes modelos familiares, indiferente se envolve brasileiros ou pessoas de outras nacionalidades.”
Existência de refugiados LGBTQIA+
Presidente da Comissão de Refugiados do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a advogada Patrícia Gorisch afirma que a decisão reconhece uma questão interessante do Direito Internacional dos refugiados: a existência de pessoas LGBTQIA+ nessas condições. “Nesse caso específico, são duas mulheres lésbicas que tiveram sua socioafetividade reconhecida por meio da união estável oficializada no Brasil.”
Ela aponta ainda que a inseminação artificial caseira tem-se tornado uma prática comum por ter praticamente custo zero. “Normalmente, é um amigo ou alguém bastante que doa o material genético. A realidade das pessoas em trânsito é bastante específica, e as clínicas são caras e elitizadas. Assim, a forma como as pessoas LGBTQIA+ fazem para constituir família é justamente pelo método caseiro.”
“Por muito tempo, a Justiça brasileira deixou de reconhecer esse tipo de filiação dentro da união estável ou do casamento homoafetivo, justamente por ser decorrente do método caseiro. Exigiam-se documentos de clínica ou certidões completamente desnecessárias, até porque o Código Civil reconhece que a filiação é presumida dentro da união estável e do casamento, tal como foi o caso.”
A advogada frisa que, sabiamente, o juiz também deixou claro o preceito constitucional presente no artigo 226 e seguintes, sobre o livre planejamento familiar, ou seja, as pessoas podem planejar a forma como vai constituir a sua família. “A criança só tem a ganhar, inclusive com o reconhecimento da família extensa na certidão de nascimento”, pontua.
Estado civil de “convivente”
Para Patrícia Gorisch, outro ponto que merece destaque na decisão da Justiça de Santa Catarina foi a admissão do estado civil de “convivente”. “Isso está cada vez mais presente no nosso dia a dia, tanto nos contratos de compra e venda e em tantos outros documentos, justamente para garantir alguns direitos”, observa a advogada.
Ela lembra que o Superior Tribunal de Justiça – STJ e o Supremo Tribunal Federal – STF, em decisões nos últimos anos, já se posicionaram no sentido da equiparação entre casamento e união estável. Vivendo em união estável, normalmente a pessoa ainda permanece como “solteira” em alguns documentos. “Aqui, o juiz fez questão de mudar o estado civil para convivente no próprio registro de óbito”, destaca.
Processo 5002926-38.2021.8.24.0049
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