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Lei alemã proíbe realização de cirurgias corretivas de sexo em menores de idade; especialistas comparam situação brasileira
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Para garantir o respeito e autonomia das pessoas intersexo, o Parlamento alemão proibiu, em março deste ano, a realização de intervenções cirúrgicas e/ou hormonais feitas em crianças com o objetivo exclusivo de adaptar o sexo à categoria binária (masculino ou feminino). No Brasil, ainda não há uma legislação específica para o assunto.
Enquanto a norma alemã regula a realização de tratamentos cirúrgicos, clínicos e/ou hormonais em crianças que possuem sexo indefinido ao nascer, o Brasil conta apenas com a Resolução 1.664/2013 do Conselho Federal de Medicina – CFM, que determina que “pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do gênero e tratamento em tempo hábil”.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM busca a revogação da resolução. Segundo a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto, eleger o sexo de um indivíduo, sem contar com a sua manifestação, é uma “total afronta ao direito à identidade”.
A especialista louva o regramento alemão, e acredita que a medida deveria ser copiada pelo Brasil.
Luta pela integridade
Em setembro, passou a valer a decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ relacionada ao registro de crianças intersexo. O plenário virtual aprovou, em agosto, o pedido de providências de autoria do IBDFAM com a ratificação do Provimento 122/2021, que padroniza o procedimento em todo o Brasil.
Desde então, crianças que nascem sem o sexo definido como masculino ou feminino podem ser registradas com o sexo “ignorado” na certidão de nascimento. Também é possível realizar, a qualquer tempo, a designação de sexo em qualquer Cartório de Registro Civil. Para isso, não há necessidade de autorização judicial, comprovação de cirurgia sexual e tratamento hormonal ou apresentação de laudo médico ou psicológico.
Para Maria Berenice Dias, o provimento do CNJ ajuda na luta pela integridade dessas crianças. “Autorizar o registro com o nome que os pais escolherem, sem estabelecer nenhum prazo para definição do sexo, é um grande avanço”, reconhece a advogada.
Segundo o ativista intersexo Shay Bittencourt, a definição de idade é uma das principais dificuldades de uma lei que proibe intervenção cirúrgica em crianças intersexo. “Não existe um consenso, em termos de idade, de quando a própria pessoa intersexo estaria apta a tomar tal decisão.”
“O que me deixa apreensivo em relação a adotar a maioridade como padrão é que a construção da identidade é um processo subjetivo. Algumas pessoas estão aptas a escolher a cirurgia antes disso, e, da mesma forma que a espera pela cirurgia causa angústia em pessoas transgênero, podemos acabar causando angustia em pessoas intersexo que desejam a intervenção”, explica Shay.
Vencer o tabu
Para o ativista, o ideal seria “os profissionais de saúde terem noção do que isso significa e a sociedade não precisar impor por força de lei”. Bittencourt ressalta: “é triste saber que isso não acontece. Mesmo hoje em dia, temos notícias de crianças muito jovens sofrendo cirurgias genitais puramente estéticas, antes mesmo de terem a oportunidade de conhecer e entender o próprio corpo, o que me faz acreditar que uma lei proibindo cirurgia em menores de 18 anos talvez seja o único caminho para proteger nossa população.”
O tema ainda é desconhecido ou ignorado por parte da sociedade. O ativista entende que o caminho para enfrentar o problema é preciso “trazer luz para todo o contexto social e psicológico que envolve a questão de ser intersexo.
“Isso é muito difícil no Brasil hoje porque vivemos em uma realidade onde algumas pessoas consideram qualquer assunto ligado a palavra gênero como algo impróprio para crianças, onde pessoas acreditam em ‘kit gay’ e ‘terra plana’. Isso dificulta muito qualquer reflexão séria sobre o assunto”, destaca.
Ele ressalta que é impossível discutir intersexuaç?es para além da biologia sem abordar discussões sobre sexo e gênero. “O desafio é vencer o tabu que limita uma discussão filosófica sobre sexo e gênero e levar as pessoas a refletirem sobre o que é sexo biológico, o que é sexualidade, o que é gênero e o que essas coisas representam em nossas vidas e em nossa sociedade.”
Shay observa: “costumo dizer que a medida do sucesso para visibilização da questão intersexo é as pessoas entenderem a proposta radical de que sexo biológico, assim com gênero, também é uma construção social. O que quero dizer com isso é que as definições de quais características anatômicas formam um corpo feminino ou masculino não são naturais, no sentido de que não existe na natureza escrito numa pedra que mulheres tem útero e vagina e homens tem testículos e pênis. Essas são definições criadas por homens por meio de observações do mundo natural, e toda observação tem viés do observador”.
E acrescenta: “se considerarmos que até meados do século XVII os anatomistas trabalhavam com a idéia do isomorfismo, e hoje o conceito usado é o do dimorfismo para a espécie humana, se torna perceptível o que eu quero dizer com viés nesse caso. Não me refiro a viés no sentido pejorativo, mas sim um viés cultural, fruto da sociedade onde o observado está inserido.”
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