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Penalização da injúria racial como racismo é passo importante na luta por igualdade, dizem especialistas
Reinvidicação antiga dos movimentos de luta antirracista, a tipificação da injúria racial, de penalidade mais branda, ao crime de racismo, imprescritível e inafiançável, está no centro das discussões do próximo Dia da Consciência Negra, celebrado no próximo sábado, 20 de novembro. O tema foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em decisão recente, e também já avança no Congresso Nacional.
Atualmente, a Lei do Racismo (7.716/1989) define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, tratando da proteção da coletividade dos indivíduos e prevendo penalidade a quem discrimina todo o grupo. Já a injúria racial (expressa no artigo 140, § 3º do Código Penal) consiste na ofensa associada a raça, cor, etnia, religião ou origem de uma vítima específica.
Em 28 de outubro, o Plenário do STF decidiu que o crime de injúria racial é imprescritível e configura um dos tipos penais de racismo. Por maioria de votos, o colegiado negou o Habeas Corpus – HC 154.248, em que a defesa de uma mulher condenada por ter ofendido uma trabalhadora com termos racistas pedia a declaração da prescrição da condenação, porque tinha mais de 70 anos quando a sentença foi proferida.
Aos 80 anos, a ré foi condenada, em 2013, a um ano de reclusão e 10 dias-multa pelo juízo da Primeira Vara Criminal de Brasília por ter ofendido uma frentista de posto de combustíveis, valendo-se da raça negra da vítima. A prática foi enquadrada como crime de injúria qualificada pelo preconceito (artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal). Ao analisar o recurso, o Superior Tribunal de Justiça – STJ entendeu que o crime de injúria racial seria uma categoria do crime de racismo, que é imprescritível.
Em voto apresentado em novembro de 2020, o relator no STF, ministro Edson Fachin, concordou com o entendimento do STJ e negou o habeas corpus. Com a alteração legal que tornou pública condicionada, que depende de representação da vítima, a ação penal para processar e julgar os delitos de injúria racial, o crime passou a ser equivalente ao de racismo e, portanto, imprescritível, conforme previsto na Constituição Federal (artigo 5º, inciso LXII). O único a divergir foi o ministro Nunes Marques.
Já no Senado Federal, avança o Projeto de Lei 4.373/2020, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). O texto alinha a legislação ao entendimento do Supremo ao tipificar a injúria racial como racismo. O Plenário se reúne nesta quinta-feira (18), em sessão semipresencial às 16h, para votar a proposta. Caso seja aprovada, seguirá para análise da Câmara dos Deputados.
Comprometimento com a luta antirracista
“Qualquer endurecimento de legislações de combate ao racismo e de favorecimento de políticas e práticas antirracistas deve ser comemorado como um avanço”, avalia a advogada Caroline Vidal, presidente da Comissão de Diversidade Racial e Etnia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
“Nosso Código Penal é antigo, bem como a própria criminalização do racismo e da injúria racial. As legislações precisam estar adequadas aos novos tempos e aos avanços sociais”, acrescenta a especialista. Ela pontua que, se a decisão do STF fosse proferida há décadas, diversos crimes teriam sido adequadamente punidos ou até evitados.
Trata-se de mais um passo no caminho da luta antirracista no Brasil, que mostra um comprometimento da maioria do Supremo com o tema. “Decisões como essa ajudam a adequar o Judiciário, levado a uma postura mais firme, que não permita mais a impunidade de condutas como a prática da injúria racial.”
Próximos passos
A advogada frisa que parte da própria população brasileira costuma relativizar os discursos racistas. “Atualmente, temos uma legislação ainda muito branda, o que permite que as pessoas façam a ofensa e saiam impunes. São pouquíssimos os casos em que há uma punição exemplar. Se tivermos penas mais rígidas com as práticas racistas, conseguiremos uma mudança no comportamento social.”
Entre os próximos passos, Caroline Vidal aponta a necessidade de uma educação racial nas escolas, de valorização da cultura negra e indígena. Outro ponto que requer cobrança e punições mais incisivas é o da discriminação salarial. Em 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE apontou que brancos recebem 75% a mais que pretos no Brasil.
O Poder Judiciário também deve trabalhar entre seus membros, incluindo os magistrados, para que possam visualizar de forma adequada quando estiverem diante dos casos concretos. “A luta é constante, e a reparação histórica vai nos custar muito tempo. O avanço vem justamente a partir de decisões como essa do STF.”
Ideologia segregacionista
Membro do IBDFAM, o advogado Paulo Iotti é um dos autores da peça apresentada pelo partido Cidadania junto ao STF. “O racismo enquanto ideologia segregacionista que nega a dignidade humana e prega a intolerância contra pessoas negras e demais grupos raciais minoritários se manifesta primordialmente pela ofensa a indivíduos em sua honra subjetiva por elemento racial, que é o que se convencionou chamar de ‘injúria racial’”, observa.
Na injúria racial, segundo Paulo Iotti, a pessoa é ofendida enquanto indivíduo em razão do seu pertencimento a grupo racial minoritário. “Logo, com todo o respeito, é simplesmente indefensável dizer que o que se convencionou chamar de "injúria racial" não seria uma ofensa racista.”
Por isso, a decisão do STF contribui em muito para o enfrentamento do racismo estrutural, segundo o especialista. “Ajuda a sociedade a se conscientizar que a ofensa a indivíduo por seu pertencimento a grupo racial minoritário é sim forma de racismo”, avalia, lembrando que negar a existência do racismo no Brasil configura um gravíssimo problema social.
“Daí a importância da decisão do STF, que é correta dogmaticamente e hermeneuticamente, porque se refere à definição da natureza jurídica do delito do artigo 140, §3º, do Código Penal (e definir a natureza jurídica de institutos legais por concretização interpretativa é competência primária do Judiciário), mediante interpretação conforme à Constituição quanto ao repúdio constitucional a todas as formas de racismo e ao princípio da proporcionalidade enquanto proibição de proteção insuficiente, já que a ofensa ao indivíduo em sua honra por elemento racial é a principal forma de racismo discursivo, porque a prescrição dos crimes raciais respectivos que era muito comum e gerava impunidade manifestamente inconstitucional.”
O advogado também cita que “a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos é pacífica no sentido de que o dever convencional de investigar e punir violações de direitos humanos (artigo 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos – CADH) demanda a punição criminal das graves violações de direitos humanos, precisamente para combater a impunidade, pelo notório sofrimento subjetivo que esta traz às vítimas e seus familiares”.
Capacitação no Judiciário e no Legislativo
“Um dos passos é termos cada vez mais capacitações e sensibilizações de integrantes do Sistema de Justiça Criminal e Civil no Brasil – delegados, promotores e magistrados –, para que parem de deixar de considerar criminosos discursos que efetivamente o são”, ressalta Paulo Iotti.
O advogado diz que é importante a capacitação e a sensibilização do Judiciário, do Ministério Público, de delegacias e demais integrantes do Sistema de Justiça. A legislação também deve ser aperfeiçoada “para deixar de se preocupar apenas com a discriminação direta, intencional, e tenha normas, não só penais, que visem prevenir e reprimir todas as formas de discriminações racistas indiretas, não-intencionais, de efeitos discriminatórios contra grupos vulneráveis, estruturais, institucionais e interseccionais.”
Para isso, foi nomeada Comissão de Juristas Negros, destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. “Inclusive mandei uma sugestão de minuta de Anteprojeto de Estatuto Penal Antirracista neste sentido, quando esta Eminente e Ilustríssima Comissão realizou audiência pública sobre o tema.”
Bibliografia recomendada
Segundo Paulo Iotti, “é preciso ouvir o que pessoas negras que trabalham com o tema e têm consciência racial e de classe e têm a falar sobre o racismo negrofóbico”. Por isso, ele indica alguns juristas que falam sobre propriedade sobre o assunto
"Racismo Estrutural", de Silvio Almeida
"Racismo Recreativo", "Pensando como um Negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica" e "Tratado do Direito Antidiscriminatório", de Adilson Moreira
"Crítica da Razão Negra", de Achille Mbembe
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