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Homem que matou mulher transexual é condenado com qualificadora de feminicídio
Atualizado em 14/10/2021
Em Santa Catarina, um homem foi condenado pelo crime de homicídio qualificado por feminicídio de uma mulher transexual, em junho de 2018. A decisão do Tribunal do Júri da comarca da Capital é uma das primeiras vezes em que jurados reconheceram que o crime contra uma mulher transexual foi cometido em razão da condição do sexo feminino. Cabe recurso ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC.
Também sentenciado pelo crime de furto, o homem teve negado o direito de recorrer em liberdade e recebeu a pena de 14 anos, 11 meses e 10 dias de reclusão, em regime fechado. O juiz Mônani Menine Pereira destacou que o réu responde a outras quatro ações penais, o que indica habitualidade na prática delitiva. Segundo o magistrado, em caso de liberdade ele certamente tornaria a delinquir.
“A condenação hoje (dia 5/10) afirmada e a consequente manutenção da prisão são, segundo estimo, uma resposta do Estado que pode, ainda que mínima e tardiamente, consolar o coração dos parentes e amigos da vítima, com a afirmação implícita pelo resultado deste julgamento de que o crime não foi tocado pela impunidade”, anotou na sentença.
De acordo com a denúncia do Ministério Público, o réu esperou a vítima dormir, após a relação íntima, para atacá-la com uma barra de ferro. Em seguida, furtou o carro e fugiu para Chapecó. Ele foi preso um mês depois do assassinato, em Itapema.
Na sentença, o juízo da Vara do Tribunal do Júri da Capital pontuou que “as circunstâncias do crime escapam à normalidade, tendo em conta que o réu se aproveitou das relações afetivas que mantinha com a vítima, atacando-a no interior de sua própria moradia, em horário de repouso noturno, impossibilitando-a de esboçar qualquer reação, pois surpreendida com a ação desmedida e inesperada do acusado”.
Autodeterminação individual
O promotor de Justiça André Otávio Vieira de Mello, que atuou no caso, destaca que a doutrina penalista brasileira utiliza diversos critérios para tratar das situações que envolvem pessoas transgênero e feminicídio, “não havendo entendimento pacífico acerca do problema”.
“Importante contextualizar que a vida trans é extremamente estigmatizada em nossa sociedade, o que se revela em casos de violência que assolam essa parcela da população, causando muitas vezes assassinatos com intensas nuances de crueldade. Hoje o Brasil é líder global em número de mortes deste grupo”, aponta o especialista.
Segundo ele, a misoginia que afeta todas as mulheres e que impõe diferentes funções para ambos os gêneros (sendo o masculino tradicionalmente concebido como superior, enquanto o feminino tem papel subsidiário) contribui significativamente para a ausência de compreensão da identidade de gênero. “Ademais, visto que ‘gênero’ é um vocábulo vago para ser compreendido pelo brasileiro médio, por oportuno sublinho que sexo é um atributo biológico, sexualidade tem a ver com quem a pessoa se relaciona, e gênero é uma forma de autodeterminação individual, que diz respeito a como o indivíduo deseja ser lido, isto é, interpretado e visto pela sociedade.”
“A Constituição Federal optou pela sociedade pluralista, que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista, que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. Nesta esteira, em relação ao feminicídio, no § 2 °– A do artigo 121, inciso VI, o legislador fez questão de expressamente indicar o que quis dizer com ‘condições do sexo feminino’: a expressão comentada, de acordo com os incisos I e II do mencionado parágrafo, é ligada a violência doméstica e familiar ou ao menosprezo ou discriminação a condição de mulher”, esclarece o promotor.
No primeiro caso, violência doméstica e familiar, é necessário que se faça a correta conceituação da mencionada característica. “Para isso, se faz mister recorrer à Lei Maria da Penha (11.340/2006), que, em seu artigo 5, afirma: ‘para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial’, no âmbito da unidade doméstica, da família, e em qualquer relação íntima de afeto.”
“Dessa maneira, depreende-se que o melhor conceito para esta expressão se encontra na Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, de 1979, a qual o Brasil é signatário e a ratificou em 1984. Segundo o mencionado tratado internacional, discriminação contra mulher é: ‘Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher’”, lembra.
O especialista ressalta que a lei, ao dispor sobre o que queria dizer com “condições do sexo feminino”, definindo como “violência doméstica ou familiar” e “menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (artigo 121, § 2, Código Penal), autorizou a interpretação sistemática, visto que o conceito das duas expressões se encontram na Lei Maria da Penha e na Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Preconceito Contra a Mulher (CEDAW - 1979), respectivamente. “Ambos instrumentos indicam o gênero no decorrer de suas definições.”
“Por derradeiro, o impacto da decisão do Conselho de Sentença da capital no ordenamento jurídico é que travestis e transexuais que tenham identidade social com o sexo feminino estão ao abrigo da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência doméstica, já que elas se reconhecem e são reconhecidas, agem íntima e socialmente como mulheres”, afirma André Otávio.
Vulnerabilidade
O promotor destaca que o Brasil teve 175 assassinatos de pessoas transexuais em 2020, segundo relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil – ANTRA, o que equivaleria a uma morte a cada dois dias. “Todas as vítimas eram mulheres trans/travestis e este foi o recorde para o gênero desde que a organização começou a divulgar o dossiê, em 2018, sempre em 29 de janeiro, que é o Dia Nacional da Visibilidade Trans.”
“Nesse sentido, um reconhecimento do Tribunal Popular de Florianópolis garantindo esta conquista, por unanimidade, junto a qualificadora objetiva do feminicídio em crime bárbaro, aponta para nova percepção social e é paradigma para outros júris que ainda virão pela frente. Não somente em Santa Catarina como nos demais estados da federação”, frisa o especialista.
Ele acrescenta: “Sem olvidar que entrega a resposta didaticamente aos delinquentes que o crime é conceituado socialmente como mais grave. Podendo o autor que desrespeita sua companheira ser condenado de 12 a 30 anos de reclusão. Pois delito qualificado!”.
Em relação aos reflexos sociais, o promotor ressalta que a situação de vulnerabilidade que marginaliza a população trans fere diversos princípios gerais do Direito brasileiro, entre eles a dignidade da pessoa humana. “Sobre esse fundamento da República, pode-se dizer que, tendo como base a experiência trans, ele é desprovido de significado e aplicação, visto que o comportamento depreciativo, violento, agressivo, causador de brutais espancamentos, torturas e homicídios contra este grupo está naturalizado na sociedade brasileira, infelizmente.”
“Um dos motivos dos quais travestis e homens e mulheres transexuais abandonarem a escola tão cedo é o fato de não conseguirem suportar as violências cotidianas sofridas nesse ambiente. Que a dignidade seja resgatada e a concepção de respeito à pluralidade e individualidade seja o norte a seguir”, finaliza.
Feminicídio
A Lei do Feminicídio (13.104/2015), em vigor há seis anos, estabelece circunstância qualificadora de homicídio e o inclui no rol dos crimes hediondos, impondo maior rigidez no tratamento contra o autor desse tipo de delito. Nas últimas semanas, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM noticiou dois casos em que mulheres foram condenadas por feminicídio. As decisões estão entre as primeiras neste sentido no país. Leia a matéria na íntegra.
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