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STJ: Inconstitucionalidade da distinção entre casamento e união estável para fins sucessórios alcança decisão anterior que prejudicou companheira
A inconstitucionalidade da distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, declarada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, alcança decisão anterior que prejudicou uma mulher que vivia em união estável. O entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao analisar a modulação dos efeitos do Tema 809, estabeleceu que a tese fixada se aplica às ações de inventário em que ainda não foi proferida a sentença de partilha, mesmo que, no curso do processo, a companheira tenha sido excluída da sucessão.
Ao equiparar casamento e união estável para fins sucessórios, o STF modulou os efeitos para aplicar a decisão “aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública”.
No caso em tela, os herdeiros questionaram no STJ a decisão do juízo do inventário que incluiu a companheira de seu falecido pai, já excluída da divisão, na partilha de um imóvel comprado por ele antes da união estável. A base para tal entendimento foi o artigo 1.790 do Código Civil de 2002, dispositivo considerado inconstitucional no julgamento do STF.
A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal dos Territórios – TJDFT, que defendeu a aplicação do artigo 1.829, inciso I, do Código Civil. Assim, admitiu-se a companheira como herdeira concorrente na sucessão, inclusive em relação ao imóvel submetido à partilha.
Para os herdeiros, as decisões que, antes do precedente do STF, aplicaram o artigo 1.790 do Código Civil e excluíram o imóvel da concorrência hereditária estariam acobertadas pela imutabilidade decorrente da preclusão e da coisa julgada formal. Assim, não poderiam ser alcançadas pela superveniente declaração de inconstitucionalidade.
Efeitos retroativos
A ministra Nancy Andrighi, relatora no STJ, explicou que a lei incompatível com o texto constitucional padece do vício de nulidade e, como regra, a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos retroativos (ex tunc). Excepcionalmente, pode ser conferida eficácia prospectiva (ex nunc), por razões como proteção à boa-fé, tutela da confiança e previsibilidade.
A preocupação do STF, ao modular os efeitos de sua decisão, foi a de tutelar a confiança e conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as regras antigas – ou seja, nas ações de inventário concluídas com aplicação do artigo 1.790 do Código Civil. No caso em análise, não houve trânsito em julgado da partilha, mas somente a prolação de decisões sobre a concorrência hereditária de um bem específico.
Foi lícito ao juízo do inventário, no entendimento de Andrighi, rever a decisão que havia excluído a companheira do falecido da sucessão hereditária com base no referido artigo, incluindo-a na sucessão antes da prolação da sentença de partilha, em virtude do reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo legal pelo STF.
Desde a Lei 11.232/2005, a declaração superveniente de inconstitucionalidade de uma lei pelo STF torna inexigível a sentença baseada nela. A matéria pode ser arguida na impugnação ao cumprimento de sentença, ou seja, após o trânsito em julgado. Assim, o juízo deve deixar de aplicar a lei inconstitucional antes da sentença de partilha, marco temporal eleito pelo STF para modular os efeitos da tese fixada no julgamento do Tema 809.
Leia o acórdão do Recurso Especial – REsp 1.904.374, disponível no site do STJ.
Para especialista, decisão deve ser festejada
Diretora nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a advogada e professora Ana Luiza Maia Nevares afirma que a decisão do STJ deve ser festejada pelo tratamento igualitário conferido ao cônjuge e ao companheiro, seguindo o que já foi determinado pelo STF. “A modulação daquela decisão foi exclusiva para partilhas que já tivessem sido devidamente julgadas e homologadas com trânsito em julgado até o momento da publicação do acórdão, e, claro, para aquelas que não tinham ainda sofrido a devida escritura pública de inventário.”
“Tal como está consignado no acórdão do STJ, a modulação é sempre excepcional porque a regra é que, uma vez julgada uma norma inconstitucional, essa decisão tem efeitos retroativos, porque não posso admitir a aplicação de uma norma inconstitucional. Porém, para salvaguardar outros interesses também relevantes, é possível modular os efeitos dessa decisão”, explica.
Foi para salvaguardar a segurança das relações jurídicas e a boa-fé na celebração de acordos que o STJ entendeu, excepcionalmente, que a decisão não atingiria partilhas já transitadas em julgado, relações já resolvidas. “O caso concreto traz a existência de uma decisão que afastou a companheira da participação sucessória sobre um bem específico, que havia sido adquirido antes da união estável.”
“Pelo artigo 1.790 do Código Civil, de fato, a companheira não participaria da sucessão desse bem. A decisão foi proferida, transitou em julgado e o processo de inventário prosseguiu. No momento de estabelecer a partilha, estabeleceu-se que a companheira fosse contemplada na partilha do imóvel, já que a modulação é restritiva, não pode ser analisada de uma forma mais ampla, é sempre excepcional.”
Código Civil está em descompasso com a sociedade
Segundo Ana Luiza Nevares, a equiparação entre cônjuge e companheiro nos sistemas sucessórios ainda gera muitas divergências. “Ao meu ver, isso acontece porque o nosso Código Civil é da década de 1970, tendo sido concebido numa perspectiva de proteção sucessória do cônjuge como personagem central da sucessão legítima, sendo ele o herdeiro mais protegido.”
“Na década de 1970, tínhamos uma família extremamente diferente da família de hoje. Ao longo dos anos, a família mudou substancialmente, basta dizer que, em 1977, tivemos o direito ao divórcio, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu plena igualdade entre homens e mulheres, sem falar na mudança da perspectiva de análise da tutela da criança e do adolescente, bem como do idoso”, exemplifica a advogada.
De acordo com a diretora nacional do IBDFAM, diante da mudança da família, que é mais igualitária, democrática, havendo cada vez mais a inserção da mulher no mercado de trabalho, verifica-se um descomposso entre a família atual e o Código Civil em vigência. “Quando o STF estabelece que o regime sucessório do companheiro deve ser igual àquele do cônjuge, atribuí à união estável a mesma proteção sucessório do Código Civil, considerada excessiva diante da família atual", destaca.
Segundo Ana Luiza, à luz do ordenamento constitucional vigente, cônjuges e companheiros devem ter o mesmo tratamento no regime sucessório. “O que precisamos fazer é mudar a lei, pensar em como o cônjuge e o companheiro devem ser tutelados no âmbito sucessório, porque o que vale para um, vale para o outro. Para solucionar esse conflito, precisamos de uma reforma legislativa que esteja em consonância com a sociedade atual, sem descuidar da proteção dos mais vulneráveis.”
“A reforma legislativa é necessária para adequar essa proteção, pensar em maior autonomia na esfera sucessória diante do casamento e da união estável. Para isso, precisamos realmente pensar em como reformular a lei sem descuidar do cônjuge ou companheiro vulnerável. Esse é um dos grandes desafios da sucessão hereditária”, conclui a advogada.
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