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Gravidez após erro médico na colocação do DIU gera dever de indenizar
A 4ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registro Público da Comarca de Goiânia condenou o município a pagar indenização por danos morais de R$ 70 mil a um casal que teve uma filha gerada por conta de erro médico na colocação do Dispositivo Intrauterino – DIU. O juiz reconheceu que “a vontade dos autores era de não terem mais filhos, ou seja, foram vilipendiados em seu direito ao livre planejamento familiar, respaldado no art. 226, § 7º, da Constituição Federal”.
O casal já tinha dois filhos, de 13 anos e um ano de idade, e, conforme alegaram, a mulher passou a usar anticoncepcional desde o nascimento do primogênito – o que justifica o espaço de tempo entre as gravidezes. Ao dar à luz na maternidade do requerido, em julho de 2018, a genitora manifestou a vontade de ser operada, pois o casal não queria mais ter filhos. A médica responsável pelo parto afirmou que não poderia atender o pedido em razão da idade da mulher, mas que ela teria direito ao DIU.
Ainda de acordo com o casal, logo após o parto normal induzido, a médica iniciou os procedimentos para introdução do DIU, e a mulher queixou-se de dores e sangramento. Segundo eles, a profissional informou que o dispositivo uterino estava bem colocado e a orientou a retornar à maternidade em 45 dias, para acompanhamento do parto e do DIU inserido, através de exames de ultrassonografia.
Consta nos autos que, na data agendada, o casal foi à maternidade para fazer o acompanhamento e, mesmo sem ter realizado o exame de ultrassonografia, o médico atendente afirmou à mulher que estava tudo bem e que era para ela retornar em seis meses para uma nova prevenção em relação ao funcionamento do DIU. Os autores alegam que, nesse período, a requerente, que não sentia a presença do DIU, começou a vivenciar sintomas de gravidez, em razão da ausência de menstruação, e decidiu, antes de retornar à maternidade, fazer exame hormonal, que constatou a gravidez em 2019.
Para confirmar a gravidez, a mulher fez uma ultrassonografia endovaginal, que certificou a gestação de oito semanas e seis dias, e não constatou a presença do DIU. Na ação, o casal imputou à maternidade a responsabilidade pela gravidez inesperada, “vez que o corpo médico manipulou erroneamente o dispositivo uterino, ou sequer o colocou”.
Segundo o juiz responsável pelo caso, a autora demonstrou, pelo Cartão da Paciente do Ministério da Saúde, apresentado na inicial, que logo após o parto, inseriu o DIU de Cobre, na data de 12 de julho de 2018; e que restou comprovado, também, pela ultrassonografia morfológica, de 23 de julho de 2019, que a mulher estava grávida de 23 semanas e cinco dias, aproximadamente, ou seja, menos de um ano depois de, supostamente, ter colocado o DIU, engravidou novamente. “De duas, uma, ou mal colocado, ou, não foi inserido o aludido DIU.”
Falha técnica
O magistrado pontuou que em nenhum exame apresentado nos autos foi constatado que havia sido inserido qualquer dispositivo intrauterino na mulher, o que deixa evidente a falha técnica na conduta médica que a atendeu na maternidade. “Deste modo, a gravidez não planejada e não desejada pelos autores, resultou de ato ilícito, perpetrado pelos prestadores de serviços do requerido, o que atraia responsabilidade objetiva da municipalidade pelos danos causados.''
O juiz reconheceu ainda que “o sofrimento experimentado pelos autores foi de grande monta, não por conta do nascimento de mais um filho, sempre motivo de celebração, mas por ter sido lhes tirada a opção de quando, ou mesmo, se teriam mais um filho”.
Para ele, a liberdade de decisão do casal, no que diz respeito ao seu planejamento familiar, foi tolhida pelo Município de Goiânia, ente que deveria, justamente, resguardá-la. “Vale dizer que o livre planejamento familiar constitui direito fundamental, e tem por objetivo garantir o exercício de muitos outros, tais como o direito à vida (da criança e da mãe), à autonomia da vontade e à dignidade da pessoa.”
Concepção involuntária
Para o advogado Mário Delgado, presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a decisão reflete uma posição já consolidada na doutrina e na jurisprudência. “Também chamado de ‘wrongful conception’, trata-se de um dano pela concepção involuntária de um filho em decorrência de falha nos métodos contraceptivos. Ou seja, o casal decidiu não ter filhos, porém, em virtude de uma falha do profissional de medicina reprodutiva na realização do procedimento ou de um vício do produto, acabou concebendo um filho não desejado, ainda que posteriormente o concepto venha a nascer com vida e saudável.”
O especialista cita as ações envolvendo uma marca de anticoncepcional, quando um lote de comprimidos fabricados com farinha e utilizados para teste (placebos) foram consumidos por mulheres que engravidaram em razão da falta de eficácia dessas cartelas específicas do medicamento. “Esse tipo de ação, envolvendo o nascimento de crianças indesejadas, já é relativamente frequente na jurisprudência brasileira, abrangendo uma grande diversidade de causas, desde o rompimento de preservativos, até falhas cometidas em procedimentos de laqueadura tubária e de vasectomia.”
Responsabilidade civil
O advogado explica que, quando se trata de vício do produto, como se deu com o caso do anticoncepcional, o Superior Tribunal de Justiça – STJ reconheceu a responsabilidade objetiva do fabricante, condenando-o a compensar a mãe pelos danos materiais e morais sofridos. Mas se a falha foi do médico, durante o procedimento de implantação do DIU, a responsabilidade é subjetiva, aplicando-se a regra prevista no § 4º do art. 14 do CDC, segundo o qual a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.
“Em se tratando de responsabilidade da pessoa física, deve ser demonstrada a culpa em sentido amplo do médico, por dolo, negligência, imperícia ou imprudência durante a realização do procedimento. Se a responsabilização for da pessoa jurídica (hospital ou fabricante do produto), a responsabilidade é objetiva, independentemente de culpa, bastando que se comprove que o procedimento foi realizado naquele hospital e o dano decorrente da falha na prestação do serviço”, pondera Mário.
O especialista destaca que, nessas situações, os pais (ou apenas aquele que se submeteu ao procedimento ou fez uso do método contraceptivo) podem deduzir, em nome próprio, uma pretensão de reparação civil contra os médicos, o hospital ou contra o fabricante (no caso de produto defeituoso), para reaver os gastos com a gravidez e criação do filho (danos materiais) e, no caso da mãe, ainda compensar o abalo moral sofrido. “A pretensão exclusiva da mãe de compensar-se pela dor e sofrimento físicos decorrente da gestação é referida na jurisprudência anglo-americana como ‘the mother’s claim’, enquanto que a pretensão dos pais de indenizar-se pelos gastos com a criação e educação do filho até a maioridade é chamada de ‘parent’s claim.’”
Ele conclui: “A responsabilidade é solidária de todos os que integram a cadeia de consumo, sendo que o hospital, clínica ou sociedade médica respondem objetivamente, pelos danos causados aos consumidores-clientes, enquanto os médicos respondem subjetivamente”.
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