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Igualdade de gênero se torna um ideal ainda mais distante devido à pandemia
A pandemia provocada pelo novo coronavírus acrescentou três décadas ao tempo necessário para reduzir a disparidade econômica entre homens e mulheres. A previsão passou de 99,5 para 135,6 anos em apenas doze meses. Os dados são do relatório anual sobre a disparidade de gênero do Fórum Econômico Mundial, que atribuiu o retrocesso ao fato de que as mulheres trabalham nos setores mais afetados pelo confinamento, entre outras questões.
O Brasil ocupa a 93ª colocação entre 156 países que integram a lista - uma posição abaixo em relação ao ano anterior. A colocação, de acordo com o relatório, reflete a pouca representatividade feminina na política, tendo em vista que menos de 15% dos assentos e postos são ocupados por mulheres. As desigualdades de gênero no Brasil também persistem em termos de participação e oportunidade. “Essas lacunas manifestam-se principalmente em termos de salários e rendimentos. Até esta data, 54,2% da desigualdade salarial e 56,7% da diferença de renda foram reduzidas”, apontou o documento.
A participação feminina na política também foi analisada pela organização. Em 81 países nunca uma mulher ocupou a máxima posição política, como presidenta ou primeira-ministra, e isso inclui países como Suécia, Espanha e Estados Unidos. Nos países avaliados, as mulheres ocupam apenas 26,1% da representação parlamentar e 22,6% dos ministérios. Eliminar essa lacuna levará cerca de 50% anos a mais do que o previsto em 2020.
Contexto desigual
A advogada Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, lembra que grande parte do trabalho realizado pelas mulheres, mesmo antes da pandemia, era invisível e desvalorizado, e que as responsabilidades culturalmente atribuídas às mulheres na esfera doméstica influenciavam a posição ocupada por elas no mercado de trabalho. “Estudos já mostravam que, regra geral, os efeitos da relação trabalho e família manifestavam-se apenas entre as mulheres e não entre os homens sendo que oferta de trabalho, expertise e qualificação determinam o trabalho masculino, enquanto o feminino sofre também o efeito de condicionantes familiares.”
Ela reflete: “Questões como a disparidade salarial entre homens e mulheres, a dupla jornada de trabalho e a sub-representação da mulher nos espaços de poder e na política ainda são desafios que vêm à tona, ano após ano. Acrescente-se também que as pesquisas já revelavam que as mulheres eram maioria nas posições mais vulneráveis, ocupando, no mercado de trabalho, posição secundária em relação aos homens e com mais dificuldade para ascender profissionalmente”.
A especialista explica que as mulheres se concentravam em espaços mais precários do que aqueles ocupados pelos trabalhadores masculinos, com menor nível de proteção social. Uma parcela significativa do contingente das trabalhadoras no mercado de trabalho era representada por atividades informais e trabalho doméstico. “Apesar das barreiras, as mulheres vinham conquistando, progressivamente, mais espaço no mercado de trabalho, nas últimas décadas, superando alguns dos limites impostos pela condição familiar, graças a prevalência das mulheres entre os mais escolarizados, tanto no ensino médio como no superior.”
Adélia pontua que, mesmo com as conquistas gradativas de espaço feminino no cenário profissional e político, ainda há muito a se fazer na luta pela igualdade de direitos, e vários são os desafios que dificultam uma maior participação política feminina.
“Vale observar que a OAB Nacional tem hoje em seus quadros, na inscrição principal, 609.183 mulheres advogadas e 609.581 advogados, com uma diferença mínima que tende a desaparecer em poucos dias, dado o aumento acelerado da participação feminina . Apesar disso, nenhuma mulher advogada figurou na chapa eleita para a diretoria nacional da OAB. E nenhuma mulher advogada preside alguma seccional da OAB”, destaca.
Para ela, nesse contexto anterior à pandemia os desafios já eram grandes para a equidade de gênero, e ainda permanecia a divisão sexual do trabalho, não só no mundo profissional, uma vez que as mulheres tinham uma sobrecarga com as obrigações relativas ao trabalho doméstico, de cuidado com a casa, com os filhos, com os familiares idosos e doentes.
Impactos da pandemia
O relatório do Fórum Econômico Mundial detalhou também que, o confinamento decretado pelas autoridades fez recair sobre as mulheres as tarefas domésticas e o cuidado com crianças e idosos, “o que aumentou seus níveis de estresse e reduziu seus níveis de produtividade”. Na contramão desses dados, a recuperação não prioriza as mulheres. Ao citar dados do LinkedIn, rede social voltada para profissionais, o estudo revela que a contratação de mulheres ocorre em um ritmo menor em muitos setores, e que elas não costumam ser as candidatas preferidas para disputar cargos de direção.
Adélia observa, ainda, que em razão das medidas sanitárias de distanciamento social, o trabalho de cuidado com filhos, familiares doentes e idosos, não pôde mais ser delegado a babás, empregadas domésticas, avós ou tias e onerou demasiadamente as mulheres, tornando impossível ou dificultando a continuidade profissional.
“Com a pandemia, foram as mulheres as mais oneradas com o aumento das demandas no espaço domiciliar, com a presença das crianças em casa, fechamento de escolas e creches. Além do trabalho em home office, quando é possível, estão elas também ocupadas com tarefas de cuidado e a educação de filhos, vários em atividades de aprendizagem telepresencial”, frisa a presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM.
Machismo estrutural
Segundo Ana Carla Harmatiuk Matos, diretora nacional do IBDFAM, o heteropatriarcado não impõe ao homem um papel tão presente nas relações domésticas, o que sobrecarrega mesmo as mulheres com trabalhos não precarizados - o que tem sido demonstrado por artigos e pesquisas recentes. “Mesmo as mulheres mais protegidas, com formação superior, como juízas, promotoras e advogadas, ainda não alcançam a plena igualdade. É aquilo que as feministas chamam de teto de vidro, no sentido que elas vão até um ponto das carreiras, mas não atingem seus postos centrais, as principais lideranças ou cargos onde poderiam exercer um diferencial.
Adélia Pessoa enfatiza que, nesse contexto pandêmico, o machismo estrutural se manifestou em vários espaços, e quem mais sofre com isso são as pessoas mais vulnerabilizadas, entre elas, as mulheres e suas interseccionalidades – negras, indígenas, pessoas com deficiência, LBTQIA+, ou de classes sociais menos favorecidas, – que precisam estar acima de qualquer retórica ou discurso.
“As orientações para preservação da saúde quanto à necessidade de distanciamento e isolamento social trouxe grande impacto nas famílias, revelando novos problemas, desnudando discriminações contra a mulher que se agravaram, sobrecarregando-as com as tarefas de cuidado, na esfera doméstica. Alia-se a isso o desemprego durante a pandemia ter afetado mais as mulheres, conforme verificado nas últimas pesquisas”, diz.
Equilíbrio de poder
Para Adélia, tudo isso repercute na vida de muitas mulheres, cujo contexto precisa ser compreendido como uma totalidade histórica em movimento e não de maneira compartimentalizada, sendo necessário visualizar-se a dimensão da crise que se espraiou não só pela saúde, mas afetou toda humanidade, em seus múltiplos aspectos. “Vale ressaltar que a cada instante somos refundadas pela história, como ensina Foucault.”
“Entendo que a pandemia apresenta à humanidade novos problemas e desafios, mas também indica caminhos. Hannah Arendt já ensinava que crise pode ser o momento propício que rompe com parâmetros e estruturas representando um espaço para o surgimento de novas respostas, percebendo-se a crise como problema e oportunidade. A crise deste momento pandêmico, com tantos problemas e desafios, provocará novas respostas. Como este contexto vem afetando as mulheres? Quais as lições que serão deixadas pela COVID19?”, questiona a advogada.
Ela pondera que não há respostas prontas e acabadas. “Sabemos que a mulher descobriu, há décadas, o espaço público, mas muitos homens não haviam descoberto o espaço privado. Será que, com o trabalho de homens em home office, houve maior democratização do espaço privado?”
“Um importante desafio da mulher era a divisão do trabalho doméstico, pelo que tanto lutamos. A parceria, em que homens e mulheres repartem as tarefas domésticas e de cuidado da família. A esperança é que os homens tenham aprendido, durante a pandemia, a partilhar as responsabilidades das atividades domésticas que, culturalmente, foram impostas às mulheres. Isso demanda novas pesquisas”, ressalta.
A especialista salienta ainda, que a equidade de gênero requer que se obtenha um equilíbrio de poder entre homens e mulheres, sem esquecer as necessidades específicas que podem ter as mulheres, e as diferenças biológicas que não podem ser confundidas com desigualdades decorrentes de padrões sexistas que permeiam a nossa cultura. “A plena participação da mulher em condições de igualdade na vida civil e a erradicação de todas as formas de discriminação por motivo de sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional. E tenho certeza, nós mulheres continuaremos nossa jornada, que não admite paradas a não ser o pouso breve para rever o caminho percorrido e retomar o fôlego para continuar.”
Direito de Família
Ana Carla Harmatiuk percebe a desigualdade até mesmo em processos do Direito das Famílias e das Sucessões. “Quem necessita de alimentos, invariavelmente, são as mulheres, ou elas representando seus filhos. Quando do cômputo de alimentos para os filhos, que deve ser conforme a possibilidade de cada um dos genitores, se percebe, na grande maioria dos casos, que a possibilidade do gênero masculino é muito superior ao feminino”, aponta.
No que se refere às sucessões, ela destaca a tentativa de fuga patrimonial para evitar partilha de bens, um tipo de violência patrimonial. “Nas discussões sobre guardas de filhos, alimentos e sucessões, pesam esses papéis e funções familiares, e ainda temos aquela compreensão de que cuidado é mais um dever feminino, e pagamento é mais um dever masculino.”
“Apesar de todas as transformações que já passamos, infelizmente, ainda temos esses traços presentes como pano de fundo do Direito de Família e das Sucessões. Cabe a cada um de nós fazer uma ponderação e uma fundamentação para superar essas disparidades”, frisa Ana.
Conscientização necessária
A diretora nacional do IBDFAM conclui que o principal método de enfrentamento a essa disparidade é colocar luz sobre essa questão, e conscientizar a sociedade, por meio de reportagens, por exemplo. Afinal, segundo ela, essa desigualdade nem sempre é revelada por meio de dados concretos.
A advogada aponta ainda para a necessidade de implementação de ações afirmativas, ou de discriminação positiva, para “colocar mulheres em certos postos em uma paridade, porque se fosse tão somente pela natureza das coisas, isso levaria muito tempo, pois a luta de partido é muto desigual e histórica. Cargos de liderança que tenham perspectivas percentuais de gênero, ajudariam ao ponto de, em alguns anos, já não ser mais necessário tais medidas.”
“O horizonte ideal é que não seja necessária a cota para que elas atinjam tal patamar. Isso seria uma medida temporária para acelerar esse processo, e quando elas lá estivessem de forma igualitária, conseguiriam, culturalmente, mudar estereótipos e funções, de modo que as próximas gerações já teriam um terreno fértil e favorável”, explica.
Ana acrescenta: “Ao lado disso, há a formação cultural e profissional e a compreensão de todas as formas de violência de gênero: a física, patrimonial, psicológica, noções estigmatizantes, expressões estereotipadas”, ações que, para ela, não favorecem a devida proteção e colocação em termos mais igualitários das mulheres.
Adélia Moreira Pessoa evidencia a necessidade de buscar uma educação continuada para a equidade, em todos os níveis escolares, para que seja possível alcançar a igualdade real com respeito às diferenças. “Entendemos que a educação é a via indispensável para mudança de padrões sexistas que permeiam a nossa sociedade.”
Segundo Adélia, a Covid-19 nos convida a desenhar um novo futuro. “Estamos aprendendo a fazer a triagem das prioridades e vendo com clareza as desigualdades de oportunidades e recursos na sociedade.”
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