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Dia da Consciência Negra: Cinco membros do IBDFAM avaliam importância da data e apontam caminhos para luta antirracista
Atualizado em 20/11/2020.
Nesta semana, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM apresenta uma série de entrevistas especiais sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado na sexta-feira, 20 de novembro. Convidamos cinco membros do IBDFAM compartilharam suas trajetórias na luta antirracista, destacando a importância do comprometimento de toda a sociedade com a causa.
Instituído oficialmente pela Lei 12.519/2011, em memória do assassinato de Zumbi dos Palmares (1655-1695), líder quilombola contra a escravidão no Brasil, o Dia da Consciência Negra não é de comemoração. É o que afirma advogada Caroline Ingrid de Freitas Vidal, presidente da Comissão de Diversidade Racial e Etnia do IBDFAM.
“É um dia de luta, protesto e construção de uma consciência de fato, não uma data comemorativa no calendário ou um simples feriado em algumas cidades do Brasil. Ainda não temos uma consciência trabalhada e construída. Há apenas uma data para falar que temos importância, o que não é suficiente”, defende Caroline.
A luta antirracista, que ainda carece de políticas públicas aliadas, também deve ser uma preocupação de toda a sociedade, segundo a advogada. “É preciso abolir práticas do vocabulário e do comportamento. Estudar, entender, se colocar no lugar do outro, ter empatia, promover a igualdade entre pessoas, valorizar a cultura das pessoas negras e combater efetivamente a prática racista, se policiando e reprimindo essas situações. Não se pode mais naturalizar determinados comportamentos que perduraram por tanto tempo.”
Função pedagógica
Para Luciana Brasileiro, o Dia da Consciência Negra tem função pedagógica, pois convida a uma luta que não deve ser restrita ao dia 20 de novembro. “As pessoas menos favorecidas, que não tem acesso à saúde, educação, moradia digna, que são mortas cotidianamente, são em grande maioria, as pessoas negras. Estamos em 2020 e ainda há quem feche os olhos para essa realidade”, frisa.
Segundo dados do Atlas da Violência divulgados em agosto, a taxa de assassinatos de pessoas pretas no Brasil saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes entre 2008 e 2018. Os números representam um aumento de 11,5% no período, enquanto os homicídios de não negros tiveram uma diminuição de 12,9%. Em 2018, 75,7% das vítimas eram negras.
Para mudar esse cenário de extrema violência, é preciso que toda a sociedade esteja engajada em ouvir e dar voz à luta antirracista. Em maio, o assassinato de George Floyd, homem negro asfixiado até a morte por um policial branco, em Minneapolis, nos EUA, foi o estopim da onda de manifestações e denúncias contra a violência e a discriminação da população negra em vários países.
“Experienciamos um povo indo às ruas contra a morte covarde de um homem negro em um país estrangeiro, mas em verdade não enxergamos que mortes covardes ocorrem todos os dias, muitas vezes, no Brasil. Essas mortes parecem não importar e fazer essa reflexão é urgente”, defende Luciana.
Superação do passado escravista
“A data tem como ponto central chamar atenção ao histórico racista, ao desmerecimento das pessoas negras neste país e ao fato de que nunca conseguimos superar nosso passado escravista nem construir soluções sociais, políticas, jurídicas e econômicas”, define a defensora pública Elisa Cruz, também membro do IBDFAM. As ações afirmativas não devem ficar restritas a novembro, como frisa a especialista. “Durante todo o ano, precisamos valorizar as pessoas negras, sua produção intelectual e cultural, de trabalho nas várias áreas. É preciso incorporá-las e naturalizar sua presença em todos os espaços.”
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, a proporção de jovens de 18 a 24 anos pretos ou pardos no ensino superior passou de 50,5% em 2016 para 55,6% em 2018. Entre os brancos, a proporção é de 78,8%. Na mesma faixa etária, o número de pretos e pardos com menos de 11 anos de estudo e que não estavam frequentando a escola caiu de 30,8% em 2016 para 28,8% em 2018, enquanto o índice para a população branca é de 17,4%.
“O que acontece no Brasil é um processo de desmerecimento, de depreciação. Precisamos nos olhar coletivamente e abrir mão de diversos espaços. Fazer uma reflexão muito profunda sobre a pessoa e a cultura negra para tirá-la desse lugar de inferioridade em que foi colocada por anos para que chegue a um patamar de igualdade”, frisa Elisa.
Para a defensora pública, o Direito tem papel fundamental nessa discussão. Deve partir dos profissionais que atuam na área o enfrentamento à discriminação por raça ou etnia. “Precisamos subir o nível e acabar com a inferiorização especialmente dentro do Direito, que foi um dos instrumentos usados para manter a escravidão neste país. O Direito precisa reverter seu histórico e colocar os traços, a pessoa e a cultura negra como tão importantes e essenciais para a construção do que é este país.”
Racismo velado ou romanceado
A Lei do Racismo (7.716/1989) define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, tratando da proteção da coletividade dos indivíduos e prevendo penalidade a quem discrimina todo o grupo. Já a injúria racial (expressa no artigo 140, § 3º do Código Penal) consiste na ofensa associada a raça, cor, etnia, religião ou origem de uma vítima em específico.
“O racismo no Brasil é estrutural, e portanto, não há, infelizmente, como um negro dizer que não foi vítima de racismo, ainda que de forma velada ou romanceada, com declarações e objeções, nas atividades profissionais e de vida”, avalia o advogado e professor João Batista de Oliveira Cândido, co-fundador e diretor nacional do IBDFAM.
Para o jurista, a superação deve partir da conscientização de que esse é um problema dos brancos. “O racismo existe, mas ninguém é racista – ou pelo menos se diz assim. O racismo não é individual apenas, de alguém contra alguém, como se coloca. Mais do que isso, é um sistema de opressão histórico que se repete, nas mais diversas formas, e de forma ainda mais grave contra as mulheres negras, que se acham na base da pirâmide oprimida”, destaca.
Brancos podem contribuir para a luta antirracista, segundo o especialista, “a partir da conscientização e reflexão, que é fundamental para que ele compreenda e se conscientize como, do seu espaço social, pode deixar de ser racista, a começar pela percepção de como se é e se tem comportamentos racistas”.
“Isso não é nada fácil, posto que implementado o racismo de forma histórica e cultural. A reflexão deve partir do seu espaço social, do seu lugar de fala enquanto pessoa branca, com o escopo claro de reconhecimento e compreensão de que temos todos o direito à dignidade enquanto seres da raça humana, na busca da felicidade”, acrescenta João Batista.
Falta representatividade nos três poderes
A falta de representatividade começa nos três poderes, o que revela uma desigualdade de natureza estrutural, com instituições racistas, segundo João Batista. “O Poder Judiciário, na sua representação máxima pelo Supremo Tribunal Federal – STF, não tem hoje qualquer negro e, quando o teve de forma única, o foi como proposta de um discurso político de inclusão, e cuja repercussão e cobrança social foi imensa.”
Segundo censo do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, de 2014, negros representam apenas 1,4% dos magistrados brasileiros. No Legislativo, não é diferente: a composição no Congresso, Senado e Câmara é de apenas 17,8%; ou seja, de 594 cargos, apenas 106 são ocupados por negros. Além disso, somente 3% dos municípios brasileiros têm prefeitas negras.
“Isso mostra a realidade brasileira. No Executivo estadual e federal, [a representatividade] é simplesmente inexistente. Significa dizer que Executivo, Judiciário e Legislativo, embora a maioria da população brasileira seja negra, são essencialmente brancos”, critica João Batista.
Relações de poder
A advogada Patricia Romana Silva do Nascimento, membro da Comissão da Diversidade Racial e Etnia do IBDFAM, reitera que não há como um negro nunca ter sofrido racismo no Brasil. “Se ele disser que não sofreu, é porque não teve essa noção, percepção. Até porque fomos educados a normatizar qualquer forma de racismo e enxergá-lo, ainda que nos dias de hoje, é se tornar ‘mimizento’”, avalia.
Segundo a especialista, ainda existem pessoas que não têm conhecimento sobre o assunto e ignoram a realidade desta sociedade estruturalmente racista que é a brasileira. “Chegam a declarar que negro comete racismo contra outro negro, declarando sua total ignorância sobre o significado de racismo. Para haver racismo, deve haver relações de poder, ou seja, a raça que não possui poder institucional, não pratica racismo, pratica preconceito. Donde concluímos que negros e índios jamais podem ser racistas”, explica a advogada.
No caminho para igualdade racial, há atitudes que devem ser adotadas por toda a sociedade, tais como: buscar conhecimento, respeitar lugares de fala e lutar pela igualdade de tratamento e pela cidadania de todos. “Não há justiça social sem que as necessidades e os interesses de 55,7% da população brasileira sejam plenamente atendidos”
Neste sentido, o Dia da Consciência Negra tem grande importância pela oportunidade de valorizar a negritude. “Embora exista a Lei 10.639/2003, que foi alterada pela Lei 11.645/2008, tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio, isso, na realidade, não funciona, pois ela não é verdadeiramente implementada”, afirma.
Esses fatores devem ser observados especialmente pelos profissionais do Direito na tentativa de erradicar a discriminação. “Uma das formas, acredito que a primeira, é fazer com que o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) seja cumprido. Sua efetividade seria uma grande arma para o extermínio do racismo, que não só atravessa o ordenamento jurídico, mas toda a estrutura da sociedade”, conclui Patrícia Romana.
O Estatuto completou 10 anos em julho. Entre os avanços, a norma trouxe uma série de diretrizes a fim de ampliar direitos em diversas áreas para populações historicamente discriminados na sociedade brasileira, como negros e índios, com disposições sobre o acesso ao mercado de trabalho e à terra, à liberdade de crença e a políticas de saúde, educação, cultura, esporte, entre outros fatores.
Leia, na íntegra, as entrevistas com os cinco especialistas do IBDFAM sobre o Dia da Consciência Negra:
17/11 Especial Consciência Negra - Elisa Cruz: "O Direito precisa reverter seu histórico"
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