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Crenças religiosas e notícias falsas têm dado força ao movimento antivacina; leis e decisões judiciais buscam coibir
Em junho, celebra-se o Dia Mundial da Imunização, lembrado no último dia 6. Durante o mês, é evocada a importância da vacinação, tema que ainda enfrenta e resistência por parte de alguns. O movimento antivacina, crescente em vários países, vêm repercutindo no ordenamento jurídico brasileiro, com jurisprudência e projetos de lei no sentido de coibir a negligência a esse ato tão importante.
No Brasil e no mundo, várias doenças já erradicadas correm o risco de voltar – como ocorreu, recentemente, como sarampo, poliomielite e rubéola. O motivo é a recusa de parte da população a imunizar os filhos, crianças e adolescentes, ou a si própria. Em geral, quem age desta forma geralmente o faz por acreditar em notícias falsas, amplamente compartilhadas nas redes sociais, que especulam sobre possíveis prejuízos à saúde decorrentes da vacinação, quando a realidade aponta justamente para o contrário.
Presidente da Comissão de Biodireito e Bioética do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a advogada Marianna Chaves vê o movimento antivacina com preocupação. Ela aponta que o fenômeno existe há tempos e por razões diversas, que vão desde a desinformação causada por teorias infundadas até doutrinações religiosas.
Precedentes históricos
“Em 1998, o médico e pesquisador britânico Andrew Wakefield publicou com outros investigadores um artigo na revista The Lancet afirmando que a vacina tríplice viral para evitar o sarampo, a caxumba e a rubéola causaria autismo em crianças. Considero esse o grande estopim para o movimento antivacinação nos últimos 22 anos”, avalia Marianna.
Ela lembra que, anos depois, a The Lancet retirou o artigo por falhas científicas e técnicas. Já Wakefield teve sua licença médica cassada. “O artigo foi considerado uma fraude, mas o estrago já estava feito”, afirma a advogada. Além disso, ela vê precedentes do atual fenômeno em uma época ainda mais distante, do início do século XVIII.
“Na Inglaterra, em 1722, o reverendo Edmund Massey pregou um sermão, muito conhecido em uma igreja ao norte de Londres e publicado mundo afora, chamado ‘A prática perigosa e pecaminosa da inoculação’. Em sua fala, o reverendo dizia que apenas os ateus, os escarnecedores, os pagãos e os incrédulos deveriam ser vacinados pois desobedeciam o Senhor, já que as doenças faziam parte da natureza humana e serviam para expiar pecados”, lembra Marianna.
Incidentes mais recentes na história contribuíram para o receio em relação às vacinas. “Apenas para citar um, em 1955, houve uma falha laboratorial e cerca de 200 mil crianças norte-americanas receberam uma vacina contra a poliomielite com o vírus ativado. Dessas crianças, quase 25% desenvolveram a poliomielite, o que causou a morte de 10 e deixou 200 crianças com diferentes graus de paralisia.”
Com esses exemplos, ela aponta que a causa o movimento antivacinação é multifatorial. “Pode vir de crenças religiosas, da pseudociência, de falhas, de efeitos adversos – como pode ocorrer em qualquer medicamento, como podemos ver ao ler a bula dos fármacos – e outros fatores, como as mídias sociais, que viralizam informações equivocadas em um piscar de olhos e terminam por espalhar ideias que prestam um desserviço à saúde das crianças”, alerta a advogada.
Legislação brasileira já obriga a vacinação
Segundo Marianna Chaves, a legislação brasileira já traz previsões expressas sobre a obrigação de pais e responsáveis com a saúde dos filhos, com base em dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, e a jurisprudência tem sido dura em casos de recusa.
“Há inúmeros julgados que concedem medidas protetivas a pedido do Ministério Público para condução da criança a um médico pediatra para avaliação e aplicação de todas as vacinas obrigatórias. Outros tantos impõem multa em razão de negligência dos deveres inerentes ao poder familiar”, observa Marianna.
Ela lembra que o artigo 14, §1º do ECA prevê a obrigatoriedade de vacinação das crianças nas situações recomendadas pelas autoridades sanitárias. Já o artigo 29 do Decreto 78.231/1976 é claro ao colocar como dever de todo cidadão se submeter e garantir que os menores que estejam sob sua guarda ou responsabilidade se submetam à vacinação obrigatória.
O artigo 27 do mesmo Decreto lembra que o Ministério da Saúde – MS estabelece o rol de vacinas obrigatórias contra doenças controláveis por meio desse processo de prevenção. O calendário e as vacinas obrigatórias estão indicadas na Portaria 1.498/2013, do MS.
Projetos de lei tentam coibir movimento antivacina
Ao avaliar projetos de lei em tramitação que tratam o tema especificamente, Marianna diz: “O ECA já traz dispositivos para prevenir, coibir e sancionar toda e qualquer negligência dos pais ou responsáveis em relação às crianças, inclusive esta de deixar de vacinar”. Na opinião da advogada, mais do que uma nova lei, falta “uma educação adequada em relação à necessidade da vacinação e uma aplicação rigorosa das normas que já temos”.
Ela explica que, além de já existirem leis a respeito, a condenação criminal já é possível com base no artigo 268 do Código Penal - CP, sobre infração da determinação do poder público destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.
“A doutrina penalista ainda considera que os pais ou responsáveis que deixem de vacinar as crianças e jovens incorrem no crime de maus tratos, previsto no artigo 136 do CP, por colocar-lhes em risco a saúde com a possibilidade de agravamento da pena se em razão da irresponsabilidade houver lesão corporal ou morte. A pena é ainda aumentada em um terço se a vítima tiver menos de 14 anos”, explica Marianna.
Por outro lado, ela aponta que o Projeto de Lei 3.842/2019 prevê a criação de um tipo penal específico. “O PL traz uma novidade bastante interessante que é a condenação nos mesmos moldes das pessoas que divulgarem ou propagarem fake news sobre as vacinas do Programa Nacional de Imunizações ou sobre a sua ineficácia”, destaca. A proposta determina pena de detenção de um mês a um ano, ou multa aos responsáveis legais do menor de 18 anos.
Pandemia ressignifica a discussão
Para Marianna Chaves, a pandemia do Coronavírus reforça a importância da discussão e tende a trazer a ela novos significados. “Estamos lidando com um inimigo invisível e desconhecido que está matando as pessoas em uma velocidade brutal. Todo mundo está esperando ansiosamente pelo dia em que descobrirem uma vacina, está todo mundo com medo, assustado. Talvez essa pandemia sirva como um abrir de olhos para nós”, prevê.
Tantos cuidados, como o isolamento social e o uso de máscara de proteção, contrastam com a facilidade com que se pode impedir que crianças e adolescentes sejam acometidos por outras graves doenças. “Basta levá-los a uma clínica ou a um posto de saúde para tomar uma injeçãozinha ou engolir umas gotinhas, e já estão estão livres do risco de contrair moléstias graves e também de transmitir para outras pessoas”, compara a advogada.
“Acho que esse momento da pandemia da Covid-19 nos mostra que temos que pensar não apenas em nós, mas também no outro. A solidariedade e a noção de coletividade tem que florescer cada dia mais, temos que cuidar uns dos outros e essa obrigação de cuidado é muito mais importante quando está em causa a saúde de crianças e adolescentes”, conclui Marianna.
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