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Especialistas comentam vetos presidenciais em leis de violência doméstica e familiar contra a mulher
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A Lei 13.894/19, sancionada na terça (29) e publicada nesta quarta-feira (30) no Diário Oficial da União, visa garantir assistência judiciária à vítima de violência doméstica e familiar no pedido de divórcio, além de facilitar a tramitação do processo judicial. A norma altera a Lei Maria da Penha (11.340/2006), para prever a competência de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para realizar divórcios, separações, anulação de casamento e dissolução da união estável.
A nova lei também altera o Código de Processo Civil de 2015, determinando ser de competência do foro domiciliar da mulher a ação de divórcio. Determinou-se, ainda, a intervenção obrigatória do Ministério Público para estabelecer a prioridade de tramitação desses processos. As autoridades policiais também deverão prestar informação às vítimas sobre o direito a assistência judiciária nas ações.
Hamilton Mourão, presidente da República em exercício, vetou trechos centrais do texto original, que tratavam do direito da mulher em propor ação de divórcio ou dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Para Mourão, haveria incompatibilidade com o objetivo dos juizados, que devem operar pela ágil tramitação de medidas protetivas de urgência pelas vítimas.
Ementa não condiz com o conteúdo da lei
Segundo Adélia Pessoa, presidente da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, os vetos impedem que a lei cumpra integralmente o seu intento. Vetado, o artigo 14 previa: “A ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.”
“A ementa não condiz com o conteúdo da lei”, afirma Adélia Pessoa. “Quanto às modificações no Código de Processo Civil, entendo válidas, no sentido da prioridade de tramitação das ações de família em que se acha envolvida a mulher em situação de violência. Como é patente o interesse público nessas ações, também pertinente, a meu ver, a intervenção do Ministério Público”, opina a advogada.
Sobre os demais artigos, ela afirma que não há grandes novidades. “Funcionam como reforço, determinando ao magistrado que informe as vítimas da possibilidade de assistência judiciária a que a mulher em situação de violência faz jus”, comenta Adélia.
Ela reitera que a mulher já tem o direito subjetivo de ser assistida juridicamente em todos os atos do inquérito ou do processo de violência doméstica. “É o que diz o artigo 27 da Lei Maria da Penha - infelizmente pouco atendido em muitas comarcas por falta de um contingente maior de Defensores Públicos ou por falta de nomeação de Defensor Dativo, na ausência daqueles”, analisa.
Em recurso especial de 2015 (REsp 1496030/MT), o Superior Tribunal de Justiça - STJ já havia entendido pela competência híbrida e cumulativa - criminal e civil - do juizado especializado da violência doméstica e familiar contra a mulher. O recente veto presidencial, por sua vez, vem como um retrocesso em comparação com algumas decisões já proferidas pelo Judiciário.
Aspecto pedagógico
Para Fernanda Tartuce, presidente da Comissão de Processo Civil do IBDFAM, a alteração no CPC/15 é positiva por permitir que a vítima, que se encontra vulnerável por força da grave situação vivida, possa demandar o divórcio no local mais acessível. “A participação do Ministério Público também é positiva porque, ao exercer o papel de experiente fiscal da ordem jurídica, a(o) representante do Parquet poderá contribuir para a adoção de medidas adequadas”, observa.
“Há também um aspecto pedagógico: a presença do(a) promotor(a) e a prioridade na tramitação salientam a gravidade da conduta, ficando ainda mais clara a existência de uma rede de apoio institucional para que a vítima possa superar a drástica situação e retomar plenamente sua força”, acrescenta Fernanda.
Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFAM, fala sobre o assunto. Assista!
Recentemente, veto presidencial foi em relação à notificação obrigatória de suspeita de violência contra a mulher
O presidente Jair Bolsonaro vetou recentemente o Projeto de Lei 2.538/19, que tornaria obrigatória, para profissionais de saúde, a notificação junto à polícia de indícios de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo comunicado da Presidência da República, os ministérios da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos foram contrários à proposta.
Casos de violência contra a mulher atendidos em instituições de saúde já eram obrigatoriamente comunicados à polícia, por determinação da Lei 10.778/03, mas não há prazo para a comunicação. O texto vetado, aprovado pela Câmara, em 2017, e originado de um texto apresentado pela deputada Renata Abreu (Podemos-SP), alteraria a Lei Maria da Penha para que fossem informados também os indícios, acrescentando, ainda, um prazo de 24 horas para as denúncias.
“A proposta contraria o interesse público ao determinar a identificação da vítima, mesmo sem o seu consentimento e ainda que não haja risco de morte, mediante notificação compulsória para fora do sistema de saúde”, disse a mensagem de veto.
“Isso vulnerabiliza ainda mais a mulher, tendo em vista que, nesses casos, o sigilo é fundamental para garantir o atendimento à saúde sem preocupações com futuras retaliações do agressor, especialmente quando ambos ainda habitam o mesmo lar ou ainda não romperam a relação de afeto ou dependência”, finaliza o texto presidencial.
O texto havia sido aprovado em setembro na Câmara dos Deputados. O veto ainda poderá ser derrubado pelo Congresso Nacional.
Projeto atenta contra autonomia e privacidade, segundo magistrada
A justificativa do veto é adequada, segundo a magistrada Ana Florinda Dantas, vice-presidente da Comissão de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM. Ela afirma que, embora tenha um objetivo louvável, a notificação compulsória atentaria contra a autonomia e o direito da mulher à privacidade, possivelmente inibindo a busca por ajuda nos estabelecimentos de atendimento à saúde.
Ela explica que a notificação compulsória visa a proteção de pessoas entendidas como hipossuficientes, aquelas que não dispõem de autonomia e outros meios para se autoproteger. É o caso de crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas portadoras de deficiência. A regra não pode ser aplicada indiscriminadamente às mulheres.
“A legislação atual assegura o sigilo de dados da ofendida, além do complexo legislativo existente já apresentar uma rede protetiva potencialmente eficaz, da qual a mulher pode e deve se valer. Por sua vez, permanece a obrigatoriedade da notificação para fins estatísticos dentro da rede de saúde, resguardando a identidade e os dados de identificação pessoal da ofendida”, afirma Ana Florinda.
Equipes de saúde devem instruir mulheres, propõe advogada
Na opinião de Adélia Pessoa, seria mais uma violência submeter a vítima ao tipo de invasão previsto no PL vetado. Ela acabaria levada a depor em delegacia, vendo instaurado um procedimento investigatório que resulta inócuo caso ela não fale a origem das lesões.
“A comunicação da suspeita de violência à polícia, quando a própria mulher esconde esse fato, justificando as lesões por outra razão, ofende tanto a autonomia da mulher quanto coloca em xeque o socorro que a mulher procurou no serviço de saúde e o seu adequado atendimento”, opina a advogada.
A comunicação de violência de gênero pelos órgãos de saúde, também segundo Adélia, deve ser feita como já está previsto na lei. Ela ressalta, por outro lado, que mesmo essa norma já vigente é pouco aplicada.
“As equipes de saúde devem informar (a mulher) sobre os serviços da rede de proteção social e sobre a importância da comunicação, mas não devem comunicar ou denunciar o caso sem a sua autorização. O atendimento deve respeitar a autonomia da mulher e seu direito de escolha, além de obedecer às normativas do Ministério da Saúde, de acordo com a lei”, assinala Adélia.
Medidas preventivas ainda são uma necessidade
Para Ana Florinda, as medidas legislativas já vigentes compõem um complexo de instrumentos de proteção. Muitas delas, contudo, apenas reproduzem outras já existentes e não completamente efetivadas. Além disso, abordam, em sua maioria, cuidados posteriores aos fatos e punições ao agressor, em detrimento de medidas preventivas.
“A cultura da não-violência se instala através da educação, e, a essa altura, já deveria existir no Brasil a obrigatoriedade de sua propagação e sensibilização nas escolas públicas e privadas, inclusive de níveis técnico e superior – compulsoriamente, em nível de matéria obrigatória, a ser estudada e debatida em todos seus aspectos, assim como nos espaços comunitários e estatais, como política pública de prioridade absoluta”, defende Ana Florinda.
Ainda se faz necessário, de acordo com a juíza, abrir espaços de crescimento educacional e profissional para a mulher, de forma a potencializar sua autoconfiança e autonomia. Por fim, ela observa, na mesma sociedade que prega o fim da violência doméstica, a depreciação do gênero feminino por meio de estereótipos de aparência e comportamento em manifestações culturais.
“A violência contra a mulher precisa ser entendida como não aceitável sob qualquer aspecto e combatida pela comunidade em geral, pois somente as sociedades não suficientemente desenvolvidas culturalmente aceitam a violência contra a mulher”, finaliza Ana Florinda.
Lei Maria da Penha carece de efetividade, segundo deputada
Autora do Projeto de Lei 2.538/19, a deputada Renata Abreu acredita que a medida ajudaria a coibir a violência contra a mulher. “Primeiramente, pela intimidação do agressor, que teria ciência de que independe da vontade da vítima a notificação. Ainda que a vítima queira esconder ou omitir, ela já não poderá mais”, afirma a deputada.
Ela ressalta que muitas mulheres são vítimas de chantagem psicológica e evitam fazer a denúncia. O PL ampliaria a possibilidade de denunciação, desestimulando o agressor, segundo Renata. “O temor do agressor é o primeiro limitador dessa situação de violência contra a mulher”, acredita.
Segundo a deputada, a Lei Maria da Penha foi um grande avanço na legislação penal brasileiro e é, ainda hoje, uma das melhores do mundo no combate à violência contra a mulher, perdendo apenas para Espanha e Chile, de acordo com dados da ONU. Para a deputada, todo esse aparato legislativo ainda carece de efetividade, na prática.
“Nosso projeto é mais uma ferramenta em defesa das mulheres, para evitar que a violência doméstica chegue ao seu extremo que é o feminicídio, quando, então, não terá mais o que ser feito - apenas atualizar as estatísticas”, argumenta Renata.
“Acreditamos que será uma medida eficaz em face do que vivemos atualmente, um cenário de barbárie contra as mulheres. Mais de 500 mulheres são agredidas a cada hora no Brasil e 13 são mortas por dia, segundo o mapa da violência divulgado no primeiro semestre deste ano”, acrescenta a deputada.
Apesar da discordância, ela afirma que respeita o veto presidencial e a justificativa apresentada enquanto partes do processo legislativo. Por outro lado, argumenta que o tema já foi efetivamente debatido nas duas casas legislativas. “Passou por diversas Comissões, inclusive pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, na Câmara dos Deputados. Isso mostra que houve plena discussão da matéria e que nosso compromisso e desejo é estancar a violência contra a mulher”, finaliza.
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