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Nota Pública: IBDFAM se manifesta sobre a situação de criança trans impedida de participar no Campeonato Sul-americano de patinação
Porto Alegre, 10 de abril de 2019.
O Instituto Brasileiro de Família (IBDFAM), através de sua Comissão Nacional de Direito Homoafetivo e de Gênero, vem a público se manifestar sobre a situação da criança Maria Joaquina, que foi impedida de participar no Campeonato Sul-Americano de Patinação.
Maria Joaquina é patinadora profissional, federada pelo Estado do Paraná, e, no último campeonato brasileiro da modalidade, que aconteceu dia 22 de março de 2019, em Joinville (SC), classificou-se em segundo lugar, posição que, de acordo com as regras da Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação, garantiria automaticamente sua vaga no campeonato sul-americano.
Entretanto, em 1º de abril do corrente ano, os pais de Maria Joaquina, através de nota emitida pela Secretaria da Confederação Sul-Americana de Patinação, receberam a informação de que sua filha não poderia competir, em razão de o prenome e o designativo sexual constarem como masculinos em seu registro civil. Isso porque Maria Joaquina é uma menina trans que ainda não obteve determinação judicial para a alteração dos documentos pessoais, processo que, desde dezembro, tramita na Vara de Registros Públicos de Curitiba/PR.
O motivo do veto, ao ver deste instituto, fere direitos fundamentais e a dignidade humana, principiologia fundamento da República Brasileira (art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil), assim como dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e da criança, que deve, inadvertidamente, irradiar por todo o ordenamento jurídico.
Nesta mesma toada, salienta-se que o Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990, ao promulgar a Convenção sobre os Direitos da Criança, reconhece a prioridade na tratativa dos direitos garantidos a toda e qualquer criança sujeita à jurisdição dos Estados signatários, sem distinção alguma, independente de sexo e de outros marcadores sociais. Ainda sobre referida Convenção, o artigo segundo preceitua que "os Estados partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra toda forma de discriminação".
Tal comando vai ao encontro da recente Opinião Consultiva nº 24/2017, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio da qual este tribunal internacional se pronunciou a respeito do reconhecimento do direito de pessoas trans a modificarem seu prenome e designativo de sexo nos documentos oficiais, em consonância com a identidade de gênero autopercebida, bem como a respeito do reconhecimento dos direitos patrimoniais derivados de uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Na ocasião, a Corte IDH sublinhou que um aspecto central do reconhecimento da dignidade – como um dos valores mais fundamentais da pessoa humana -, constitui-se pela possibilidade de todo ser humano se autodeterminar e escolher livremente as opções e circunstâncias que dão sentido à sua existência, conforme suas próprias convicções.
Assim, além de afirmar expressamente que os Estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos estão obrigados a adotar medidas positivas para reverter e/ou mudar situações discriminatórias existentes em seus contextos sociais específicos, estabeleceu condições mínimas a que estes entes estatais devem se atentar para a efetivação do direito à livre identidade de gênero, incluindo, dentre outras determinações, a celeridade, extrajudicialidade e a não patologização de pessoas trans nos procedimentos de alteração registral.
No tocante a crianças e adolescentes, a Corte IDH consignou que estes sujeitos são titulares dos mesmos direitos que os adultos; destarte, são titulares de todos os direitos contemplados pela CADH, sem restrição alguma.
Desta maneira, a Corte tem sustentado que todas as considerações relacionadas anteriormente à identidade de gênero também são aplicáveis a crianças e adolescentes que desejam apresentar solicitações para modificar seus registros civis, uma vez que sua identidade de gênero autopercebida merece tutela protetiva do Estado.
Como se sabe, a OC 24/17 fez parte do conjunto de fundamentos exteriorizados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275, que assentou a possibilidade de alteração do registro civil de pessoa trans, sem a necessidade de confirmação de cirurgias de transgenitalização nem a apresentação de laudos patologizantes, facultando à(ao) interessada(o) o requerimento do procedimento pela via extrajudicial.
Em seu voto, o ministro Celso de Mello afirmou que “é imperioso acolher novos valores e consagrar uma nova concepção de direito fundada em uma nova visão de mundo, superando os desafios impostos pela necessidade de mudança de paradigmas em ordem a viabilizar, até mesmo como política de Estado, a instauração e a consolidação de uma ordem jurídica genuinamente inclusiva”, acrescentando se tratar a decisão de um passo significativo contra a discriminação e o tratamento excludente que tem marginalizado a comunidade transgênera.
No mundo do esporte, vale lembrar que o Comitê Olímpico Internacional, desde 2016, permite a participação de atletas trans nos eventos organizados pela entidade, posição que deve ser sustentada pela Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação e da Confederação Sul-americana de Patinação, sob pena de tratamento discriminatório. O esporte, como prática individual ou coletiva, tanto em fins de recreação como em competições, deve ser visto como um meio de inclusão social, nos termos do artigo 217, §3º da CF.
Logo, diante de todo o arcabouço fático e teórico exposto, conclui-se que toda criança tem o direito de desenvolver sua identidade na medida das características singulares de sua personalidade e, assim, medidas positivas devem ser efetuadas para se tutelar adequadamente a identidade de gênero de pessoas trans, rechaçando-se todo e qualquer tratamento discriminatório e impeditivo do exercício de seus direitos fundamentais.
A organização da competição não pode negar a Maria Joaquina o direito de participar da competição sul-americana exclusivamente por seus documentos oficiais apresentarem-se em discordância de sua identidade de gênero. A criança não pode arcar com o prejuízo de não participar da competição por conta da morosidade judicial brasileira. Além do mais, não se pode descurar que a menina é desportista exemplar e vem treinando arduamente para lograr êxito em participar do evento competitivo.
Caso o veto persista, entende-se que é necessário denunciar aos organismos internacionais a organização da competição por violação aos direitos humanos e da criança nos aspectos do direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade e à liberdade de expressão de sua identidade de gênero.
MARIA BERENICE DIAS
PRESIDENTE DA COMISSÃO DE DIREITO HOMOAFETIVO E GÊNERO DO IBDFAM
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