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Ministro Celso de Mello, decano do STF, reconhece homotransfobia como espécie de racismo
O ministro Celso de Mello, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26), julgou procedente em parte a ação reconhecendo o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional em face de sua omissão em editar a legislação pertinente e para dar interpretação conforme à Constituição Federal em face dos mandados constitucionais de incriminação para enquadrar a homofobia e transfobia nos diversos tipos penais existentes até que sobrevenha legislação autônoma do Congresso Nacional. Isso significa que o ministro reconheceu que as práticas homotransfóbicas qualificam-se em espécie de racismo. Com a conclusão da leitura do voto do relator, nesta quarta-feira, 20, a sessão foi encerrada e será retomada amanhã.
O ministro já havia reconhecido a omissão inconstitucional do Congresso Nacional, na última quinta-feira, quando iniciou a leitura de seu voto. Na sessão de hoje, ele apreciou a tese do autor da ação sobre o reconhecimento de que a homofobia e a transfobia enquadram-se na noção conceitual de racismo.
O ministro se referiu à indiferença do Congresso Nacional ao tema classificando-a como “conduta procrastinatória e abusiva inércia intencional do parlamento, que não pode ser tolerada”, e garantiu que o “STF, ao longo dos últimos 30 anos, evoluiu neste tema no plano jurisprudencial buscando soluções para fazer cessar essa omissão legislativa”.
Celso de Mello citou definições e noções de raça e racismo e a conceituação do filósofo Norberto Bobbio, segundo a qual “para o pensamento racista não só existem raças diversas como existem raças superiores e inferiores”.
O decano também citou diversos documentos internacionais como a Declaração da Organização para as Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO - de 1978, que refutou qualquer doutrina que estabeleça desigualdade entre homens e raças.
Homofobia representa uma forma contemporânea do racismo
Segundo o ministro relator da ADO 26, Celso de Mello, o STF deve reafirmar a orientação consagrada no precedente histórico da Corte - Habeas Corpus nº 82.424 - Diário da Justiça de 2004, Caso Ellwanger - para que o conceito de racismo não se resuma estritamente às características fenotípicas. Ele ressaltou que inexiste reconstrução jurisdicional de tipos penais e não se verifica qualquer inovação no plano do ordenamento penal pela inserção nele de nova hipótese.
Citando novamente a UNESCO, o ministro afirmou que a tolerância é a harmonia na diferença e praticar a tolerância não significa renunciar às próprias convicções, na verdade isto estimula respeito e aceitação da diversidade das pessoas evitando que irrompam preconceitos nocivos aos grupos vulneráveis.
“Separação entre Igreja e Estado foi uma conquista da República”, diz Celso de Mello
Celso de Mello também discorreu sobre a liberdade de expressão e religiosa. Segundo ele, “em hipótese alguma” vislumbra ofensa à liberdade de expressão, o Estado adotar medidas que visam a prevenir e impedir condutas homofóbicas e transfóbicas.
Na interpretação do ministro, pregações, sermões e homilias têm o amparo do texto constitucional, e a exposição e reprodução de narrativas de livros sagrados de qualquer religião não se revelam aptas a veicular delitos contra a honra.
“Quando o líder religioso lê ou extrai da bíblia ele está agindo com a intenção de narrar, não há que se cogitar de crime contra a honra mesmo que ofenda grupos ou comunidade LGBT”, disse.
No entanto, o ministro ressaltou que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional de liberdade de expressão.
Segundo ele, a livre expressão de ideias e convicções em sede confessional, não pode e não deve ser impedida pelo poder público, mas eventuais abusos cometidos no exercício dessa liberdade ficarão sujeitos ao Poder Judiciário.
Direitos humanos
O ministro invocou a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e outros tratados e pactos internacionais de Direitos Humanos. Ele mencionou o Holocausto e afirmou que lembrar dessa passagem da história da humanidade é uma oportunidade para o povo europeu de refletir sobre os perigos de discriminar pessoas com base em raça, etnia, religião, opção política ou orientação sexual.
O decano enfatizou que o STF tem proferido decisões de caráter contramajoritário que objetivam preservar a intangibilidade de direitos e prerrogativas de direitos e valores e grupos minoritários e que o STF “não tolera a prepotência dos governantes e não se curva a grupos majoritários que buscam impor exclusões de direitos aos grupos vulneráveis”.
Ele destacou que se impõe ao STF, como guardião da Constituição Federal, reafirmar a cada momento seu respeito ao texto Constitucional, velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas e fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis.
O ministro relator encerrou seu voto enfatizando que neste processo está em debate o permanente conflito entre civilização e barbárie e o STF deve fazer prevalecer que acima da estupidez humana e das distorções ideológicas e degradação torpe dos valores que estruturam a ordem democrática, os princípios que exaltam e reafirmam a dignidade ética dos direitos humanos.
Julgamento vai para o terceiro dia
Com a suspensão da sessão de hoje, o julgamento conjunto das ações vai para o terceiro dia. Em 13 de fevereiro, primeiro dia de julgamento, ocorreu a leitura dos relatórios dos ministros Celso de Mello (ADO 26) e Edson Fachin (MI nº 4733) e iniciaram-se as sustentações orais.
Falando em nome do PPS e da ABGLT - impetrantes das ações - o advogado Paulo Iotti defendeu a importância do lugar de fala da comunidade LGBT e a argumentação exposta nas Ações. Segundo ele, não se pode hierarquizar opressões e, se outras opressões são penalizadas, a homotransfobia também tem que ser. “Entendo que o Direito Penal mínimo exige a criminalização da homofobia”, argumentou.
O advogado comentou, na sua exposição, que o STF já manifestou que a discriminação contra judeus, denominada antissemitismo, é crime de discriminação "por raça", por entender racismo como qualquer ideologia ou conduta que pregue a inferioridade de um grupo social relativamente a outro. “Sendo raça um conceito político-sociológico, então homofobia e transfobia são crimes de racismo. Se racismo é a interiorização de um grupo social relativamente a outro, como o STF já afirmou (no HC 82.424/RS), então homotransfobia é o crime de discriminação por raça. Não há analogia (in malam partem), portanto”, disse.
Participação do IBDFAM
Também se manifestaram as entidades admitidas como amici curiae no processo, entre elas, o Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. O advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do IBDFAM, reforçou o apoio à tese do MI nº 4733.
“O IBDFAM tem representação significativa no Brasil e sua conexão com essas ações está no fato de que, a cada 19 horas, morre um membro de uma família em razão da homofobia e da transfobia”, afirmou.
Para o advogado, o Direito é um importante instrumento de inclusão ou exclusão das minorias no laço social e as pessoas LGBT estão sendo “excluídas, massacradas e assassinadas”. Ele ressaltou que o Direito é um eterno exercício de argumentação e contra-argumentação e apelou que o STF siga viés de interpretação humanitário para preservar os direitos dessa minoria que estão sendo violados.
Voto histórico
O voto de 18 tópicos e mais de 140 páginas do ministro Celso de Mello, relator da ADO 26, foi classificado como “histórico” pelo presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. Na sessão de hoje (20), o ministro Luiz Fux também elogiou o voto e disse: “É uma pérola literária em forma de voto”.
Mello já havia confirmado a inércia do Congresso Nacional em editar lei penal que torne crime a violência contra gays, lésbicas, travestis e demais integrantes da comunidade LGBT, quando deu início à leitura de seu voto na quinta-feira (14).
Ele citou escritores, como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Oscar Wilde, e grandes doutrinadores brasileiros, entre eles, a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Maria Berenice Dias.
O ministro destacou que a comunidade LGBT caracteriza-se pela diversidade de seus integrantes, “embora todos unidos por um ponto comum: sua absoluta vulnerabilidade agravada por práticas atentatórias aos seus direitos essenciais”. O relator também mencionou a sexualidade como dimensão fundamental da experiência dos seres humanos.
Segundo o ministro, grupos políticos e sociais vêm estimulando o desprezo e disseminando ódio à comunidade LGBT. Ele leu manchetes de casos de crimes contra a população LGBT e ressaltou que o Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. Segundo ele, séculos de repressão, intolerância e preconceito com esse tema resultam em graves proporções que tanto afetam as pessoas em virtude da sua orientação sexual e identidade de gênero.
Em dado momento de seu voto mencionou: “Essa visão de mundo fundada na ideia artificialmente construída de que as diferenças biológicas entre homem e mulher devem determinar seus papéis sociais: 'meninos vestem azul e meninas vestem rosa'. Essa concepção de mundo impõe, notadamente, em face dos integrantes da comunidade LGBT uma inaceitável restrição a suas liberdades fundamentais, submetendo tais pessoas a um padrão existencial heteronormativo incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, impondo-lhes ainda a observância de valores que além de conflitar com sua própria vocação erótico afetiva conduzem à frustração de seus projetos pessoais de vida”.
O ministro relator chamou as agressões homotransfóbicas de comportamento “covarde racista e preconceituoso”.
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