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Série “Um olhar sobre a adoção”
"Não estamos em uma feira livre"
Quem passa pela Rua Guaratinga, localizada no simpático Bairro Dom Bosco, em Betim, Região Metropolitana de Belo Horizonte, não imagina que está próximo de encontrar uma daquelas histórias de vida que inspiram e nos fazem refletir um pouco mais sobre o ser humano. Na altura do nº 166, diante da placa do escritório de advocacia, encontramos Wilton Carlos Pereira. Como milhares de brasileiros, ele teve uma infância difícil, superou a distância dos pais, se tornou um adulto antes da hora, lutou e venceu barreiras. Mas, nunca esqueceu a passagem por dois abrigos.
O advogado Wilton Pereira, 50 anos, nasceu em Belo Horizonte. Quando os pais se separaram, ele tinha apenas cinco anos, o irmão seis e a irmã mais velha, sete. O rompimento foi conturbado e Wilton ficou anos sem ter notícias do pai. “Foram tempos muito difíceis. Minha mãe não tinha condições e, para conseguir nos criar, precisou voltar para a casa dos meus avós”, relembra.
Os avós maternos viviam no Bairro Eldorado, entre BH e Contagem. Ele conta que a mãe sofreu muito preconceito, pois, naquela época, na década de 1970, as mulheres eram mal vistas por estarem separadas dos maridos. A família, muito humilde, tinha dificuldades, inclusive, para conseguir o pão de cada dia. “Com a ajuda de alguns tios, conseguimos um barracão de apenas um cômodo para morar. Como precisava trabalhar, minha mãe nos deixava em algumas creches, que são muito semelhantes ao que hoje conhecemos como abrigos”, afirma.
Wilton se emociona ao relembrar aqueles tempos. Conta que ele e os irmãos, ainda pequenos, iam sozinhos para a creche, que ficava a uma distância de quatro quilômetros de onde moravam. Atravessavam uma das avenidas mais movimentadas de Belo Horizonte, a Amazonas, para chegar ao local onde eram acolhidos por padres e irmãs de caridade. “Lá também era muito simples, não tinha a estrutura que muitos locais têm hoje. Era um sistema muito rígido, muitas crianças apanhavam, mas era a nossa chance de termos alguma alimentação”, comenta.
Wilton não deixou de ter o convívio com os irmãos e a mãe, mas viveu na pele o que é estar em um abrigo. Ao longo de seis anos, passava praticamente o dia inteiro fora e voltava para casa apenas à noite. “Nós éramos a família mais necessitada da região. Somente muito tempo depois, a pensão alimentícia foi regularizada”, explica. Para cuidar dos filhos, a mãe de Wilton saía pelas ruas vendendo enciclopédias, mas era um trabalho ingrato, pois dependia muito de comissões.
Quando completou 11 anos de idade, Wilton foi junto com o irmão para outro abrigo, onde ficavam de segunda a sexta-feira. O local era administrado por padres e ficava em um bairro distante de onde moravam. Os meninos dividiam espaço com outros 200. Aos fins de semana, quando tinham dinheiro para pagar o ônibus, eram liberados para visitar a mãe. Quando não tinham, permaneciam no abrigo. “Era uma creche conveniada com a antiga Febem (Fundação Casa), mas lá só ficavam crianças de famílias muito pobres e que não tinham dinheiro para sustentá-las”.
O advogado diz que entende a situação da mãe. “Ela não tinha condições de manter os três adolescentes em casa. Ficava preocupada conosco, pois a nossa casa ficava numa área cercada pelo crime”. Junto com o irmão, Wilton passou dois anos no abrigo coordenado pelos padres (tempo máximo permitido). Após muito sofrimento, voltou para casa antes de completar 14 anos, quando conseguiu o primeiro emprego como trocador de ônibus. Ele ainda trabalhou vendendo panelas e em uma montadora de veículos. Entre idas e vindas de casa para o trabalho, soube de uma chance que mudaria sua vida para sempre.
“Quando eu tinha 21 anos de idade, fiquei sabendo que o quartel da Polícia Militar estava recrutando soldados. Passei no teste e lá trabalhei por 28 anos”, diz. Na PM de Minas Gerais, Wilton foi soldado, cabo, sargento e subtenente. Nessa época, a família se mudou para uma casa um pouco maior, de três cômodos, oferecida por um tio.
Em 2003, Wilton Pereira passou no vestibular da PUC Minas e deu início ao curso de Direito. Formou-se em 2009 e deixou a Polícia Militar em 2012. Durante todo esse tempo, o advogado sofreu com o preconceito e com a falta de condições financeiras, mas nunca desistiu dos seus sonhos. Hoje ele vive no Bairro São Luís, em Contagem. “Me casei e tive três filhos, um deles também já é advogado”, comemora.
Wilton lida diariamente com causas criminais e de Direito de Família. Também por ter vivido em abrigos, tem um olhar bastante preocupado com as crianças que estão internalizadas aguardando por um lar. “Ainda existe muita burocracia e os casais idealizam uma criança que se pareça com eles mesmos. Não podemos pensar que estamos em uma feira livre, onde basta escolher o que se quer. Estamos falando de seres humanos, que precisam de afeto e de respeito”, complementa.
O advogado cita as milhares de crianças que estão no Cadastro Nacional da Adoção (CNA) e destaca a necessidade de as pessoas conhecerem a realidade dos abrigos, com o objetivo de mudarem as suas perspectivas e aprenderem que a dignidade humana é mais importante do que meras características físicas.
O advogado Wilton Carlos Pereira: história de superação
Foto: Divulgação
O Brasil tem hoje mais de 47* mil crianças e adolescentes esquecidos em abrigos. É uma situação cruel e dramática, que envergonha o País. A edição 31 da Revista IBDFAM, lançada em maio, tratou do tema adoção. Prestes a completar 20 anos de existência, o IBDFAM se junta à causa da adoção com a proposta de um anteprojeto de Lei do Estatuto da Adoção, ponto de partida para o Projeto “Crianças Invisíveis”, que será lançado no XI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, de 25 a 27 de outubro, em Belo Horizonte, do qual esta série, Um olhar sobre a adoção**, também faz parte.
*Números oficiais do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas: 47.201, em 29 de agosto de 2017 – Fonte: Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
**Consultoria: Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.
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