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Série “Um olhar sobre a adoção”
Devolução – recorrência de abandono
Insegurança, autodepreciação e medo. Estes são alguns dos sentimentos que tomam crianças e adolescentes, à espera de adoção, devolvidos aos abrigos brasileiros ainda durante o estágio de convivência, período determinado pela Justiça para adaptação junto à nova família. Eles ficam destruídos e com muito medo de uma outra oportunidade. Além disso, o problema é ocultado pela falta de divulgação, pois, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até hoje não é possível saber, através do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), quantos são os casos de devolução em nosso País, já que o sistema não faz distinção dos processos concluídos entre efetiva adoção ou desistência do pretendente.
A advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM, afirma que, apesar de não haverem números oficiais, ouve-se falar no meio jurídico em 10% de crianças e adolescentes devolvidos durante o processo de adoção em todo o Brasil. “Em nossa atuação profissional, já acompanhamos a devolução de irmãos de um e três anos, de menino de sete, de três meninas (dois, sete e 11 anos de idade), todas muito traumáticas para todos. A primeira e a última foram devoluções com pouquíssimo tempo de convivência; a segunda ocorreu em virtude do divórcio dos adotantes. Recentemente soube de uma devolução em função da situação socioeconômica dos adotantes. A crise também afeta as adoções”, explica.
Segundo Rosana Ribeiro da Silva, advogada, psicóloga e assessora jurídica da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), a devolução destrói a autoestima da criança e do adolescente, já que as feridas do abandono inicial, pela família biológica, que começavam a sarar com o abrigamento e encaminhamento para a nova família, são reabertos e aprofundados. “A devolução poderá resultar em inviabilização de nova adoção, já que, de regra, os habilitados temem receber em seus lares uma criança/um adolescente ‘problemático’. Ou seja, a culpa da devolução acaba recaindo na criança/no adolescente e não nos adultos que novamente perpetraram o crime terrível do abandono”, aponta.
“Precisamos parar de brincar de casinha, adoção não é teste drive, adoção é o exercício da parentalidade responsável”
No início deste mês, foi aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), do Senado Federal, o Projeto de Lei (PLS 370/2016), que visa a cassação da habilitação do renunciante para outra adoção em caso de desistência injustificada do processo durante o chamado “estágio de convivência”. A medida foi encaminhada para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde deverá receber decisão terminativa. Na CDH, o relator foi o senador Paulo Paim (PT-RS), que sugeriu emenda para aperfeiçoamento do projeto, que sugere a inclusão de novos dispositivos no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 1990).
“Entendo adequado e necessário. As pessoas que adotam são, em tese, os adultos da relação e têm que se portar como tal. As motivações para as devoluções são as mais estapafúrdias possíveis, já ouvi relatos de: ‘come demais’, ‘faz xixi em horas inadequadas’, ‘só quer assistir ao Rei Leão 100 vezes por dia’, e por aí seguem-se inúmeras desculpas sem lógica. Quem não consegue assumir e se empoderar no papel parental não pode adotar. Se devolver sem motivo, deve sim, ser banido do cadastro”, alerta Silvana do Monte Moreira.
Pelo projeto, a cassação da habilitação não exclui a possibilidade de responsabilização do desistente no plano da legislação civil. Com a emenda de Paim, a eventual responsabilização passa a ter como claro objetivo a busca de “reparação por danos morais ao adotando”. No entendimento da presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM, a pessoa que devolver a criança/ o adolescente depois do estágio de convivência, ou seja, já em guarda para fins de adoção, deve reparar o dano pela perda de possibilidade daquela criança ou daquele adolescente em constituir-se em filho. Afirma, ainda, que a pessoa deve arcar com alimentos até que a criança/o adolescente encontre uma família ou até o término da universidade como filho que é. “Precisamos parar de brincar de casinha, adoção não é teste drive, adoção é o exercício da parentalidade responsável”, afirma.
Rosana Ribeiro lembra que algumas das crianças devolvidas retornam muito confusas aos abrigos, sem saber sequer o próprio nome, expressão de sua personalidade. “É necessário repararem-se tais danos à psique causados pelo novo abandono. Reparação esta que passa pelo pagamento de acompanhamento psicológico que trabalhe, trate e quiçá diminua as dores emocionais que restam para a criança/o adolescente. Dependendo do caso deverá ainda ser imposto o pagamento de pensão, a ser depositada em conta em seu nome, que lhe garanta um mínimo de segurança econômica para um futuro sem família, se nova adoção for inviabilizada pela devolução”.
Segundo o Senado Federal, o restante do texto do Projeto de Lei foi mantido na forma original, com previsão de que a desistência da adoção seja avaliada pela equipe interprofissional ou multidisciplinar a serviço da Justiça da Infância e da Juventude. Deve ser levado em consideração, dentre outros fatores, a idade da criança ou do adolescente e o tempo transcorrido no estágio de convivência até a desistência.
Se o juiz constatar a inexistência de justificativa ou, considerando a avaliação da equipe multiprofissional, poderá então decidir pela inconsistência da justificativa apresentada e cassar a habilitação do pretendente. Ainda pelo texto, todos casos de desistência durante o estágio de convivência, assim como a respectiva avaliação da equipe multidisciplinar, deverão ser comunicados ao Ministério Público e ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para registro estatístico e acompanhamento. Mas em situações de devolução, como a Justiça pode preservar o melhor interesse da criança e do adolescente? Para Silvana do Monte Moreira, esta ainda é uma pergunta difícil de ser respondida, pois não se pode considerar correta a manutenção dos menores com uma pessoa que não a quer, ou que não a ama.
“Essa (e) criança/adolescente foi revitimizada (o) por esses adultos que, em tese, estavam preparados para a adoção já que passaram por vivências, reflexões, estudos. É necessário realizar uma boa habilitação, não com três ou quatro sessões, mas com nove, em analogia a gestação natural. Em nove meses, quando vemos nosso filha pela primeira vez, somos assolados por dúvidas e inquietações: será que vou amar? Será que vou dar conta? Em tese os habilitados viveram mais intensamente essa preparação onde os grupos de apoio à adoção ligados à ANGAAD mostram não apenas as flores, mas as pedras do caminho da adoção. Não é fácil ser pai, não é fácil ser mãe, exercer a parentalidade adotiva ou natural não é para amadores, a caminhada é árdua, mas pode ser exitosa se nessa construção a base for o cuidado”, explica.
Silvana diz que a lei precisa ser cumprida e pede a criação de varas exclusivas em matéria protetiva, onde crianças e adolescentes deixem de ser propriedade dos pais ou do Estado e passem a ser sujeitos de direitos. “Alguém tem que ter a coragem de fazer cumprir o ECA, o Provimento 36 do CNJ. Os tribunais de todos os estados têm que contratar psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, além de implantar varas com competência exclusiva em Infância e Juventude na esfera protetiva, para cada comarca a partir de 100 mil habitantes. O artigo 227 da Constituição Federal traz o princípio da prioridade absoluta e pergunto: que prioridade é essa que jamais foi cumprida? E não venham falar em crise, pois são 27 anos sem cumprimento e nada é feito para punir os que não cumprem”, complementa.
O Brasil tem hoje mais de 47* mil crianças e adolescentes esquecidos em abrigos. É uma situação cruel e dramática, que envergonha o País. A edição 31 da Revista IBDFAM, lançada em maio, tratou do tema adoção. Prestes a completar 20 anos de existência, o IBDFAM se junta à causa da adoção com a proposta de um anteprojeto de Lei do Estatuto da Adoção, ponto de partida para o Projeto “Crianças Invisíveis”, que será lançado no XI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, de 25 a 27 de outubro, em Belo Horizonte, do qual esta série, Um olhar sobre a adoção**, também faz parte.
* Números oficiais do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas: 47.198, em 20 de junho de 2017 – Fonte: Conselho Nacional de Justiça – CNJ.
** Consultoria: Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.
A foto de capa desta edição do Boletim Informativo foi gentilmente cedida por Eurivaldo Bezerra e faz parte do seu livro Filhos.
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