Notícias
STF admite coexistência de parentalidades simultâneas
A Ação RE 898060-SC, que trata da prevalência ou equiparação da filiação socioafetiva em relação à biológica, foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (21). O advogado Ricardo Calderón, vice-presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), representou a instituição no julgamento, ao proferir a sustentação oral junto ao Supremo. “A decisão mantém a multiparentalidade e a manutenção dos pais afetivos e biológicos. Trata-se de uma decisão muito importante, pois firma o princípio da afetividade nas relações familiares e consolida o vínculo socioafetivo como suficiente vínculo parental e, além disso, avança no sentido de reconhecer a possibilidade jurídica de multiparentalidade”, afirma. Os ministros julgaram a possibilidade da modulação dos efeitos minimalistas, ou seja, a depender do caso concreto tendo em vista as peculiaridades de cada processo específico. Amanhã, será firmada a tese com relação a esse processo em nova análise pelo plenário.
Confira entrevista com Ricardo Calderón:
1- Qual sua opinião a respeito da pauta deste julgamento?
Neste julgamento, o Supremo Tribunal Federal enfrenta um dos atuais desafios da parentalidade contemporânea, vez que julga um tema de repercussão geral envolvendo conflitos entre paternidades socioafetivas e biológicas. O caso que baliza a questão discute o reconhecimento tardio de uma paternidade biológica em substituição a uma paternidade socioafetiva e registral.
O processo em pauta é de relatoria do ministro Luiz Fux que, ao sustentar a presença do requisito da repercussão geral, destacou que a questão subjacente envolvia a análise da “prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica”. Há inúmeros casos apreciados pelo Superior Tribunal de Justiça sobre estes temas. Tamanha a relevância dessa causa, que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) se habilitou como Amicus Curiae, sendo admitido no feito.
Este julgamento poderá se constituir em um possível leading case sobre a parentalidade contemporânea, cuja deliberação pode vir a ser uma relevante orientação nesta temática. A comunidade jurídica aguarda ansiosamente por esta deliberação.
2- O que é a parentalidade socioafetiva?
O direito de família brasileiro admite a possibilidade jurídica de reconhecimento de parentalidade socioafetiva, sendo esta a precursora em receber a respectiva chancela jurídica. Entretanto, recentemente noticiam-se inclusive casos de reconhecimento de maternidades socioafetivas.
O princípio da afetividade está consolidado no direito de família brasileiro e, em vista disso, vem reverberando em suas diversas searas, inclusive nas relações de parentalidade. No Brasil, a socioafetividade é reconhecida como elemento suficiente para consagração do vínculo parental, conforme já aceito com tranquilidade pela nossa jurisprudência e, também, pela nossa literatura jurídica especializada.
Diante disso, ao lado da filiação biológica, da registral e da adotiva, perfila também o vínculo socioafetivo, lastreado na força construtiva dos fatos sociais. A posse de estado de filiação é acolhida pelo direito civil brasileiro, estando prevista na parte final do art. 1.593 do Código Civil (como vínculo de outra origem).
Os vínculos socioafetivos decorrem de uma relação de fato, vivenciada concretamente entre os envolvidos, com manifestações afetivas típicas daquela fattispecie (como a relação de filiação, por exemplo). Em regra, encontram-se presentes os requisitos da afetividade, estabilidade e ostentabilidade, como elenca o professor Paulo Lôbo.
Estando presentes estes requisitos em uma dada relação fática, é possível que se lhe reconheçam os consequentes efeitos jurídicos, consubstanciados no vínculo da socioafetividade.
3- De acordo com o Projeto de Lei 470/2013 (Estatuto das Famílias), “Os filhos independentemente de sua origem biológica ou socioafetiva, têm os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer desiguações ou práticas discriminatórias”. Qual sua opinião a respeito?
Esta igualdade decorre de expressa previsão constitucional (art. 226, parágrafo 6º, CF), que veio reiterada no Código Civil (art. 1.596, CC). Atualmente, os filhos socioafetivos, devidamente reconhecidos, já detêm os mesmos direitos que os filhos biológicos, como não poderia deixar de ser.
O interessante na redação do estatuto é prever expressamente a parentalidade socioafetiva, o que não deixaria margens a quaisquer dúvidas, no que confere um tratamento jurídico mais adequado a estas relações.
4- Podemos dizer que paternidade e maternidade são funções exercidas?
Sim. Atualmente prefere-se falar de ‘função paterna’ e ‘função materna’, como ensina a professora Heloísa Helena Barboza, visto que tais papéis podem ser desempenhados por outras pessoas que não necessariamente o ascendente genético.
Inúmeros são os casos nos quais essa função paterna e/ou materna são devidamente exercidas por outras pessoas, que não os chamados ‘pais biológicos’. Exemplo disso é o número cada vez maior de famílias recompostas, nas quais novo integrante passa a exercer esse papel, mesmo ausente seu vínculo biológico com um dado filho. Diante disso, os estudos têm demonstrado que o exercício adequado desse papel não está, necessariamente, imbricado com uma vinculação genética.
Importa atentar para a distinção, já alcançada pelo direito de família brasileiro, entre a descendência genética e filiação, que nem sempre recaem sobre a mesma pessoa. Essa distinção é vital para a escorreita compreensão do tema. Como ensina o professor Paulo Lôbo, “ascendente é quem gera, pai é quem cria”.
Em consequência, a partir da estrutura do direito civil brasileiro, podemos afirmar que há um direito da personalidade que consiste na garantia do conhecimento da ascendência genética, mas que é distinto do direito de filiação, visto que podem não coincidir tais vínculos em todos os casos concretos. Essa questão perpassa um pouco do debate subjacente à repercussão geral que será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal.
5- A parentalidade socioafetiva pode vir a impactar as bases do atual sistema jurídico?
A parentalidade socioafetiva é uma realidade do direito de família brasileiro, com reconhecimento jurídico consolidado há muitos anos. O Superior Tribunal de Justiça tem decisões nesse sentido a partir da década de 1990. O refinamento dessa teoria permite afirmar, inclusive, que o direito de família brasileiro exerce papel de vanguarda nesta temática.
A cautela que se recomenda na análise do caso em apreço é, justamente, para não vir a se arranhar esta categoria, que foi edificada durante todos esses anos no direito brasileiro. Qualquer que seja a solução adotada pelo STF, importa atentar para que não seja prejudicada esta conquista paulatinamente alcançada.
6- Diante do reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva, a figura do(a) genitor(a) corre o risco de ser excluída?
Ao que parece, uma compreensão adequada das categorias indica que o reconhecimento da socioafetividade não traz risco algum para a figura do genitor. O vínculo biológico segue presente no nosso sistema jurídico, o que não se questiona. Em alguns casos, o vínculo biológico segue inclusive com inequívoca proeminência, como nas situações de estabelecimento de uma paternidade desconhecida (para filhos que não possuam pais registrais e/ou afetivos, por exemplo), situações nas quais segue bastando a comprovação do vínculo biológico (via exame em DNA) para o estabelecimento da paternidade.
Entretanto, há que se distinguir os casos nos quais exista uma paternidade socioafetiva e registral consolidada há muitos anos, em um dado momento, pretenda-se a desconstituição dessa paternidade apenas com a alegação de ausência de vínculo biológico. Esses complexos casos que passam a surgir exigem uma maior reflexão.
Em outras palavras, para os casos de desconstituição de uma dada paternidade socioafetiva e biológica já consolidada, pode não ser suficiente apenas a demonstração de ausência do vínculo biológico. Este é um dos pontos centrais no debate. A complexidade dessas situações fáticas pode exigir que, nesses casos de desconstituição, se leve em conta também a força do vínculo socioafetivo e registral no momento da deliberação final. Ou seja, nessas hipóteses, pode não ser suficiente apenas a demonstração de ausência de vinculação genética.
Esta possível distinção de critérios para estabelecer uma paternidade inexistente, dos critérios necessários para se desconstituir uma paternidade consolidada, é, possivelmente, uma das questões que mais desafia o atual direito de família brasileiro.
O tema é complexo. Espera-se que figure de alguma forma no referido julgamento.
7- Na sua opinião, o afeto tornou-se um valor jurídico?
Atualmente, o grande vetor das relações familiares contemporâneas é a afetividade, o que exige que o Direito que pretenda regular tais relações perceba esta peculiaridade. A assimilação jurídica da afetividade é vital para a edificação das respostas do presente e, felizmente, está consolidada no direito brasileiro.
O reconhecimento jurídico da afetividade fica claro nas recentes manifestações do Supremo Tribunal Federal, em temas jusfamiliares: tanto no julgamento do caso das uniões homoafetivas, como no recente caso da equiparação do regime sucessório da união estável ao casamento, diversos ministros se manifestaram expressamente sobre a afetividade, o que é mais um indicativo da sua aceitação.
Legislação, doutrina e jurisprudência concedem valoração jurídica à afetividade, que inclusive está prevista de modo expresso como um dos princípios do projeto de Estatuto das Famílias.
8- A paternidade socioafetiva sempre deve prevalecer sobre a biológica?
Não. Entendo que não deve existir uma prevalência apriorística de uma sobre a outra. Ambas são espécies de vínculos parentais, que devem conviver no nosso sistema jurídico, harmonicamente.
Não parece indicado hierarquizar tais critérios em abstrato, a priori, em tese. Apenas em um dado caso concreto pode vir a ser possível afirmar a prevalência de um ou outro critério, mas com a finalidade específica de equacionar àquele caso. Ou seja, somente no momento efetivo de acertamento de uma dada lide que se apresente. No Direito de Família brasileiro, parece mais adequado falar na coexistência desses modelos, que devem figurar em igual patamar.
Vínculos biológicos, afetivos, registrais e adotivos são elos de parentesco e, como tais, encontram a mesma dignidade constitucional. Em vista disso, o que parece mais indicado é atentar para a dimensão do fato, da vida; apenas a realidade concreta dirá qual espécie de vínculo prevalecerá em cada conflito específico.
Outro tema que decorre dessa coexistência de modelos são os atuais casos de multiparentalidade, hipóteses nas quais a coexistência persistirá até mesmo na situação concreta específica. Esse é outro desafio que se apresenta ao direito de família brasileiro, e que também merece reflexão.
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br