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PGR opina pela proteção aos direitos dos transexuais
É possível a alteração de gênero no registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de adequação de sexo, sendo vedada a inclusão, ainda que sigilosa, do termo “transexual” ou do sexo biológico nos respectivos assentos. Este é o parecer da Procuradoria-Geral da República no Recurso Extraordinário 670.422, de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (STF).
A PGR inclusive propôs em 2009, por meio da então procuradora-Geral da República Deborah Duprat, Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI 4.275) para que seja dada interpretação conforme a Constituição ao art. 58 da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), que estabelece que “o prenome será definitivo, admitindo-se todavia a sua substituição por apelidos públicos notórios”, e se reconheça o direito dos transexuais a substituírem o prenome e o sexo no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização. De acordo com o parecer do procurador-Geral Rodrigo Janot, emitido no último mês, há clara identidade de matéria entre aquela ADI e o recurso extraordinário que será julgado.
Já em 2009 a procuradora-Geral afirmou que, se a alteração de nome corresponde a uma mudança de gênero, a consequência lógica é a alteração do sexo no registro, pois “do contrário preserva-se a incongruência entre a identidade da pessoa e os seus dados do registro civil”. Asseverou não ser a cirurgia o ato que concede ao indivíduo a condição de transexual e, por isso, o direito fundamental à identidade de gênero justifica a troca do prenome, independentemente da sua realização. Segundo Duprat, o não reconhecimento do direito dos transexuais à troca de prenome e sexo correspondente à sua identidade de gênero viola preceitos fundamentais da Constituição como os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), da vedação à discriminação odiosa (art. 3º, inciso IV), da igualdade (art. 5º, caput), da liberdade e da privacidade (art. 5º, caput e inciso X).
Para Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e advogada na ação, a identidade da pessoa não é da ordem da sua genitalidade e sim de como ela se sente. “Nada justifica que a sua documentação não seja condizente com a sua realidade”. Segundo ela, a alteração passa por hormonetarapia e outras cirurgias secundárias, mesmo porque o custo da transgenitalização é muito alto ou porque a lista para a cirurgia no SUS pode chegar a dez anos de espera. Além disso, ela diz, a cirurgia é considerada de grande risco, experimental, e o resultado não é garantido para o transhomem, por exemplo, que tira os seios e os ovários, deixa de menstruar, e não sente falta de um órgão. “A identidade de uma pessoa não tem nada a ver com órgãos sexuais. A Justiça não pode impor uma cirurgia a alguém e este é um passo significativo que a jurisprudência já tem garantido, vem aceitando e é o que nós estamos atrás nesse caso”, disse.
A advogada Marta Cauduro Oppernan, membro do IBDFAM e que também atua na ação, explica que elas conseguiram no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a mudança do nome independente da cirurgia, mas não do gênero no registro. “Conseguimos a autorização da troca do nome, mas determinaram no registro não alterar o gênero de masculino para feminino, o que continua expondo a pessoa. É absolutamente invasivo à privacidade e por isso recorremos ao Supremo Tribunal Federal para alterar o nome, mas também o gênero. Esta decisão, como é de repercussão geral, vai valer para todos que estejam em situação igual”, disse. A advogada também destacou que os resultados da cirurgia não são bons, por isso muitos não fazem.
Visão da PGR - No parecer, Janot afirma que os transgêneros enfrentam problemas quando precisam expedir e apresentar documentos ou valer-se das informações neles constantes. Muitas vezes, como nas situações relatadas pelo recorrente na ação, “sofrem constrangimento ao responderem chamadas em faculdades, ao se apresentarem para entrevistas de emprego e ao se identificarem em repartições públicas, dentre outras situações de inegável comprometimento de sua interlocução com terceiros, nos espaços públicos e privados, todas decorrentes da ausência de conformação entre a informação contida nos documentos oficiais e a sua identidade de gênero. Janot defende que é necessário perceber – e, mais que isso, reparar – o constrangimento sofrido pelo trans que, identificado e vestido com roupas masculinas, tratando-se de “transhomem”, é obrigado a ser civil e socialmente identificado como mulher e vice-versa em relação à “transmulher”.
Para ele, é inegável a importância individual, social e jurídica do reconhecimento, pela Suprema Corte, do direito do recorrente – e de outros transexuais que assim o desejarem – de alterar o sexo no registro civil, sem qualquer anotação do termo “transexual” no assento de nascimento, independentemente de prévia submissão à cirurgia de neocolpovulvoplastia – ou, em se tratando de transmulher, à neofaloplastia.
No parecer, o procurador-Geral defende que o Direito deve ser capaz de acompanhar as mudanças que a transformação das realidades sociais introduz na vida cotidiana, “libertando-se de preconceitos que nos impedem de aceitar o próximo do jeito que é”. “O Judiciário, em sua atuação, deve ter como premissa máxima a garantia da dignidade de todo ser humano, indistintamente”. E defende que impor a anotação do termo “transexual” no registro de nascimento e/ou exigir a “conclusão” do processo de transgenitalização, com a realização da neocolpovulvoplastia, como requisito para a alteração do gênero é o mesmo que negar, individual e socialmente, a identidade masculina do recorrente, a qual integra a sua imagem identitária, como ele se vê e é percebido, violando-se, assim, o seu direito a uma vida digna. “A desarmonia psicossocial que a apresentação de um documento – e a identificação civil em suas mais variadas situações – com dados que não correspondem ao gênero com o qual se identifica causa à sua identidade pessoal é inegável, e, muitas vezes, chega a ser fonte de violência”.
E cita que é possível que o processo transexualizador sequer envolva a cirurgia de transgenitalização, exemplificando com a Portaria 2.803 do Ministério da Saúde, editada em 19 de novembro de 2013: a aptidão para se submeter à cirurgia não significa que o transexual deva necessariamente se sujeitar a esse tipo de tratamento. “A Portaria, aliás, é expressa, conforme seu art. 2º, I, em consignar que a meta terapêutica não se restringe às cirurgias de transgenitalização e demais intervenções somáticas. De mais a mais, o recorrente, assim como diversos outros trans, não tem interesse em realizar a neocolpovulvoplastia, exatamente em razão dos riscos advindos de tal procedimento cirúrgico. Nesse contexto, deve ser reconhecido que a exigência feita pelo juízo a quo viola também o direito à saúde e à liberdade”.
Janot cita o filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth, para quem a negativa de reconhecimento gera uma violência ou abuso físico, que consiste no impedimento de alguém estar fisicamente seguro no mundo, e uma violência não física. “Uma das formas de violência não física citada por Honnet, e aqui já abordada, é exatamente a exclusão de alguém de uma esfera de direitos, negando-lhe autonomia social e possibilidade de interação. A isso o autor denomina ostracismo social. A segunda forma de violência não física é a negativa de valor a uma forma de ser ou de viver, e é ela que está por trás das formas de tratamento degradante e insultuoso a certas pessoas e grupos, pois promove o desrespeito por maneiras individuais ou coletivas de viver, exatamente como aconteceu no caso em apreço. Ao ser impedido de alterar o registro civil, o transexual sofre as duas formas de violências citadas por Honnet. São-lhe negadas a autonomia social, a possibilidade de interação e a vivência da sua identidade”, escreveu. “Não se trata apenas de negar uma alteração formal, mas de impedi-lo, ainda que indiretamente, de ser o que é, de ser reconhecido como o que é e, ainda, de gozar de um direito básico, de todo e qualquer ser humano: o de ter o prenome e o gênero sexual compatíveis com a real condição morfológica e psicológica do indivíduo”.
Direito à privacidade/intimidade – Janot argumenta que outro direito fundamental diretamente ligado ao caso é o direito à privacidade, que, nos termos dos Princípios de Yogyakarta, “inclui a opção de revelar ou não informações relativas à sua orientação sexual ou identidade de gênero, assim como decisões e escolhas relativas a seu próprio corpo”. Os Princípios de Yogyakarta estabelecem o dever do Estado de assegurar o direito de todas as pessoas poderem escolher, normalmente, quando, a quem e como revelar informações sobre sua orientação sexual ou identidade de gênero, e proteger todas as pessoas de revelações arbitrárias ou indesejadas, ou de ameaças de revelação dessas informações por outras pessoas.
“A decisão impugnada viola o direito à privacidade, na medida em que, ao impor a inclusão do termo “transexual” nos assentos do registro civil do transhomem, acaba por impedi-lo de escolher quando, a quem e como revelar informações sobre sua identidade de gênero. Viola, ainda, o art. 5º, inciso X, da Constituição, que diz serem “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, e, no âmbito internacional, o art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o art. 17 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o art. 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que asseguram que “ninguém será objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de ataques a sua honra ou a sua reputação” e que “toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou ataques”.
Direito à igualdade e à não discriminação – No parecer, Janot cita ainda o respeito pela identidade de gênero, parte essencial da igualdade entre homem e mulher assegurada no art. 5º , I, da Constituição, no art. 24 da Convenção Americana de Direitos Humanos, no art. I, primeira parte, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e no art. 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. “É parte igualmente essencial do direito à não discriminação por motivos de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero, tal como assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. I, primeira parte) e nos seguintes tratados ratificados pelo Brasil: Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 2) e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (arts. 2, 4, 24 e 26).
Desdobramentos - A alteração do sexo nos assentos do registro civil, sem a inclusão do termo “transexual”, poderá ter implicações, segundo Janot, no casamento e na união estável, nos critérios para promoção na carreira, na aprovação em testes de aptidão física, nas atividades de desporto, na seguridade social, na aplicação da Lei Maria Penha, na determinação do estabelecimento prisional onde deverão ficar sob custódia ou cumprirem pena, na investigação criminal, na aferição dos critérios de alistamento eleitoral e na prestação obrigatória de serviço militar pelos transexuais. “Apesar de não integrarem o pedido do recorrente e da possibilidade de serem enfrentadas em ações autônomas, é recomendável, dada a sistemática da repercussão geral, que tais questões sejam sopesadas na apreciação do presente recurso”, defendeu.
O procurador-Geral explica no texto que no que tange ao casamento, eventual omissão do transexual quanto à sua identidade de gênero e ao processo de transgenitalização, pode dar ensejo à configuração de vício de vontade, permitindo-se anular o ato jurídico, sob o fundamento de erro essencial quanto à pessoa (art. 1.556 do Código Civil). “Além disso, demonstrada a existência de danos morais e materiais causados pela omissão, o transexual deverá indenizar o terceiro de boa-fé. Logo, não prospera o argumento de ser necessária a publicização a fim de resguardar direitos de terceiros, sob a justificativa de que o registro e as informações dele constantes são de interesse público”, garantiu. E exemplificou citando Camila Gonçalves, para quem a possibilidade de falseamento da verdade é da realidade da vida, estendida inclusive a outras hipóteses de ofensa à boa-fé do companheiro ou cônjuge, como adultério, alcoolismo e drogadição, por exemplo, sem que se cogite restringir direitos essenciais da personalidade aos faltosos.
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