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Depoimento sem dano ainda não é realidade em vários estados brasileiros
Existem várias formas diferentes de escuta de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de abuso e alienação parental no Brasil e são muitas as instituições e pessoas querendo proteger as vítimas infantojuvenis, no entanto, às vezes não protegem pois não existe um regramento e nem protocolos. Esta é a constatação da especialista Luciane Pötter, membro da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM/RS, que há oito anos pesquisa sobre a participação de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas no processo penal e civil.
Como pesquisadora, Luciane visitou Delegacias de Polícia em Porto Alegre e no interior, observou como são efetuados os depoimentos nas Delegacias e em audiências judiciais no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e na Bahia. “Estudei as várias formas de escuta judicial e extrajudicial das crianças e adolescentes, tanto na forma tradicional de oitiva como em depoimento especial”. Em alguns estados brasileiros, como no Rio Grande do Sul, ela explica, o Tribunal de Justiça investiu na escuta protegida ou depoimento especial em processo judicial, de acordo com a resolução 33 do Conselho Nacional de Justiça que, em 2010, recomendou aos tribunais a criação de serviços especializados para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. “É necessário normatizar este procedimento no território nacional”, diz.
Segundo Luciane Pötter, as crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crime “participam atualmente no ordenamento jurídico brasileiro através de laudos periciais físicos e psicológicos, são ouvidas pelo método tradicional de oitiva (arts. 201 e §§ e 202 e seguintes do CPP), são ouvidas pelo método Depoimento Especial (não tem previsão legal, o amparo está nos princípios constitucionais). As novidades estão na Lei nº 13.105/2015 – NCPC – art. 699, no Projeto-de-lei nº 8.045/2010 – Reforma do CPP (arts. 192 a 195) e no Projeto-de-lei nº 3.792/2015 – Marco normativo da escuta de crianças e adolescentes”.
Para ela, um avanço é o artigo 699 do Código de Processo Civil de 2015, que diz que quando o processo envolver discussão sobre fato relacionado a abuso ou a alienação parental, o juiz, ao tomar o depoimento do incapaz, deverá estar acompanhado por especialista. “Felizmente o novo CPC avançou na área da escuta de crianças com o objetivo de protegê-las quando participam em processos judicias. Desponta pioneira na lei processual. Conforme o artigo o juiz deverá estar acompanhado por especialista ao tomar o depoimento dos menores, só não diz como isso será feito. Se pelas salas especiais de Depoimento Especial ou se o especialista somente acompanhará os menores durante o depoimento na forma tradicional de oitiva como acontece em Portugal, por exemplo, onde o especialista apoia emocionalmente a criança.”
As crianças são o patrimônio do nosso país, ela diz, e muitas vezes encontram-se em risco. “E dentro de suas próprias casas. Podem ser vítimas das mais variadas violências, inclusive de abuso sexual (que abarca o abuso psicológico e emocional) ou no caso de alienação parental que pressupõe abuso psicológico e emocional”, diz. Segundo Luciane, as situações que culminam com o ato de alienação parental constituem um grave ataque ao direito fundamental de convivência familiar. “A lei trata essa questão como abuso moral contra a criança e/ou o adolescente. Uma das alegações mais corriqueiras no âmbito da alienação parental é a de que o menor foi vítima de abuso sexual, onde, dentre as formas de abuso possíveis de serem invocadas, sem dúvida, é a mais grave e comprometedora. Esta vítima já vitimizada, agora terá que enfrentar o sistema de justiça para contar a sua história”.
Violência sexual – De acordo com Pötter, a violência sexual que acontece dentro do lar é uma das fomas mais graves de violência vitimizando pessoas em desenvolvimento, na forma da violação dos seus direitos fundamentais de crescerem saudáveis. Segundo ela, trata-se, portanto, de um delito que deixa uma marca muito profunda. “Marca a alma das vítimas”, afirma. E um dos aspectos mais complexos, ela garante, tanto do ponto de vista jurídico como criminológico, é relativo à posição da vítima criança/adolescente como testemunha em processos. “É um grande desafio investigar o crime sexual. Muitas vezes um crime sem testemunhas, onde existe a palavra da vítima contra o suposto ofensor e sem vestígios físicos. No processo penal brasileiro não existem normas especiais ou procedimentais específicas para a oitiva de crianças, as normas são as mesmas que regem a inquirição dos adultos, podendo causar um dano psicológico pois não levam em consideração a sua peculiar condição de desenvolvimento incompleto”.
Nas pesquisas realizadas, percorreu o caminho das vítimas. “É tortuoso, vitimizador. Quando é necessário que uma criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência sexual conte várias vezes, a diversas pessoas diferentes e sem qualificação sobre o que lhe aconteceu ou sobre o que viu, pode ser tão traumatizante quanto o ato em si, dependendo do ato cometido”, diz. Pötter conta que no processo tradicional de depoimento pode haver mais de sete ouvidas diferentes e além de produzir a revitimização, a repetição de entrevistas poderá fragilizar a confiabilidade da declaração da vítima como prova no processo. “O que existe no modelo tradicional de oitiva é a formulação e reformulação constrangedora de perguntas e insinuações, normalmente, utilizadas de forma imprópria, inadequada e infrutífera, levando a vítima a sofrer duas vezes o ato de violência (abuso sexual/alienação parental – vitimização primária - e após psicológico na esfera judicial – vitimização secundária)”, afirma.
A especialista destaca os direitos ao respeito e à dignidade humana como os direitos fundamentais mais violados no decorrer de um processo judicial. “O problema do desrespeito aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes vítimas torna-se ainda mais grave quando o desrespeito parte daqueles que por ofício ou mandato foram incumbidos pela sociedade ou pelo Poder Público para se tornarem os guardiões dos seus direitos. É necessária humildade intelectual para aceitar o fato de que a visão técnico-jurídica dos operadores do direito tem limites, portanto, a capacidade profissional do jurista para ouvir o relato da vítima infantojuvenil de abuso sexual e de alienação parental e também de falar, não é suficiente e nem eficiente, podendo causar um dano irreparável às vítimas vulneráveis”, diz.
E ressalta que existe a necessidade de evoluir. “Poupar as crianças de tanto constrangimento e romper a barreira do silêncio com respeito e dignidade”. Luciane explica que diante dessa terrível realidade foi idealizado o Projeto Depoimento Sem Dano, hoje Depoimento Especial, Projeto gaúcho, como uma possibilidade estratégica de política criminal de redução de danos, de minimização da vitimização secundária. “Em 2003, o 2º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS implantou o Depoimento Sem Dano (DSD) por iniciativa do desembargador Daltoé Cezar. Na época, Juiz de Direito. Em 2004 foi institucionalizado pelo TJ/RS por Ato do Conselho da Magistratura. Desde 2010, é chamado de Depoimento Especial por recomendação do CNJ”.
Ela conta que a primeira tentativa de regulamentação do Depoimento Especial ocorreu no ano de 2006, através de Projeto de Lei nº. 7.524, o qual acrescentava o Capítulo IV-A ao Código de Processo Penal de 1941, regulamentando a forma como seria feita a inquirição judicial de crianças e adolescentes, como vítimas e testemunhas. “Este projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados. No Senado Federal, o entendimento foi de que o seu texto deveria ser incorporado ao projeto de lei do novo Código de Processo Penal nº 8.045/2010. Este Projeto-de-Lei nº 8045/2010, que é a Reforma do CPP prevê o Depoimento Especial. O DE está dentro do capítulo II – Dos meios de Prova - na Seção III – Disposições especiais relativas à inquirição de crianças e adolescentes, artigos 192 a 195. Esse conteúdo é do Projeto- de- Lei 7524 de 2006.
O art. 194 é específico sobre o DE e fala das suas etapas: I – a criança ou o adolescente ficará em recinto diverso da sala de audiências; II – a criança ou o adolescente será acompanhado por um profissional devidamente capacitado para o ato; III – na sala de audiências, onde deverá permanecer o acusado, as partes formularão perguntas ao juiz; IV – o juiz, por meio de equipamento técnico que permita a comunicação em tempo real, fará contato com o profissional que acompanha a criança ou o adolescente, retransmitindo-lhe as perguntas formuladas; V – o profissional deverá simplificar a linguagem facilitando a compreensão do depoente; VI – o depoimento será gravado”.
De acordo com Luciane, tramita na Câmara de Deputados em regime de urgência o Projeto de Lei nº 3.792/2015 que é o Marco normativo da escuta de crianças e adolescentes recomendando o modelo alternativo de oitiva conforme a metodologia do Depoimento Especial. Estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência. “É completo e atual e atende de forma adequada às necessidades de crianças e adolescentes. Determina um protocolo nacional para a escuta protegida de vítimas de violência organizando o atendimento na rede de proteção. Pretende ampliar o controle público e social dos fatos que constituam atos de violência, procurando atuar desde o momento da notificação do fato, organizando a forma de atendimento na rede pública (CRAIS, CREAS, Conselhos Tutelares, etc), e ainda responsabilizando todos aqueles que deixarem de agir na defesa das garantias nele previstas.”
Atualmente, o método especial de oitiva pelo Depoimento Especial não tem caráter obrigatório, portanto, segundo ela, fica a critério de cada juízo utilizá-lo ou não. Um grupo de trabalho formado por especialistas já trabalha na confecção de um Provimento sobre o Depoimento Especial a exemplo de outros Tribunais, garante. O Depoimento Especial já existe em 28 países. No Brasil está implantado nos estados do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Pernambuco, Paraná e Distrito Federal. No Estado gaúcho já contam com o projeto Depoimento Especial, até o momento, 37 cidades. Até o final de 2016 serão 42 com instalações novas, sistema digitalizado e videoconferência.
Funcionamento - Luciane explica que a dinâmica do Depoimento Especial ou escuta protegida é realizada em três etapas: acolhimento inicial, entrevista forense propriamente dita e acolhimento final. "Nessa forma de depoimento a criança fica em um ambiente especial (sala simples e sem brinquedos que possam tirar a atenção da criança), apenas com a psicóloga (que deve possuir qualificação para o ato), que faz o acolhimento inicial, promovendo a proteção psicológica e depois no próximo momento (audiência) repassa as perguntas dos operadores jurídicos que ficam em outro ambiente, na sala de audiências, com acesso à imagem e ao som da sala especial, através da TV, em tempo real. O depoimento é gravado. A técnica utilizada é chamada de Entrevista Cognitiva. Portanto, esse método evita o contato da vítima com o acusado, e reduz a vitimização secundária. Quando a criança/adolescente se sente protegida e confortável para relatar, a ansiedade diminui e a narração dos fatos flui melhor".
Luciane Pötter é advogada, mestre em Ciências Criminais, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS e da Comissão da Infância e Juventude IBDFAM/RS. Autora do livro “Vitimização Secundária InfantoJuvenil e Violência Sexual Intrafamiliar - Por uma Política Pública de Redução de Danos”; e organizadora dos livros “Depoimento Sem Dano - Uma Política criminal de Redução de Danos” e “Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes - Quando a Multidisciplinaridade aproxima os olhares”.
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