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Dia Nacional da Adoção: discriminação racial cai, desafio agora é outro
Hoje é o Dia Nacional da Adoção. Especialistas comemoram a mudança, ainda que sutil, do perfil de crianças procuradas pelos pretendentes e deixam um alerta: a demora nos processos de destituição familiar e a prioridade exagerada conferida à família biológica condena centenas de crianças a uma única sentença: o acolhimento institucional.
A discriminação racial dos pretendentes à adoção tem caído significativamente, de acordo com dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), da Corregedoria Nacional de Justiça - CNJ. A redução é constatada porque, ao se inscreverem no cadastro, os futuros pais adotivos precisam responder, entre outras exigências, se possuem restrições em relação à cor da criança, ou seja, se aceitam adotar uma criança negra ou parda.
Nos últimos seis anos, o número de pretendentes que somente aceitam crianças de raça branca tem diminuído. Em 2010, eles representavam 38,73% dos candidatos a pais adotivos, enquanto em 2016 são 22,56% de pretendentes que fazem essa exigência. Paralelamente, o número de candidatos que aceitam crianças negras subiu de 30,59% do CNA em 2010 para os atuais 46,7% do total de pretendentes do cadastro. Da mesma forma, o número de pretendentes que aceitam crianças pardas aumentou de 58,58% do cadastro em 2010 para 75,03% dos candidatos atualmente.
Na opinião da ministra Nancy Andrighi, corregedora nacional de Justiça do CNJ, o trabalho das Varas da Infância e da Juventude e também dos Grupos de Apoio à Adoção tem sido fundamental para que os pretendentes tenham esse desprendimento em relação à raça das crianças. “Os cursos de preparação para adoção – estabelecido pelo artigo 50, parágrafo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente –, realizados pelas equipes multidisciplinares das varas ou dos municípios, conseguem mostrar aos pretendentes a realidade das crianças que estão aptas a serem adotadas, fazendo com que abdiquem de idealizações preconcebidas, notadamente as crianças brancas e com menos de três anos”, diz a ministra Nancy.
Segundo a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), há 18 anos os grupos de apoio à adoção trabalham os perfis dos habilitandos para que as crianças acolhidas tenham a visibilidade necessária.
“São mais de 136 grupos filiados à ANGAAD – Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção - que trabalham, de forma voluntária, as adoções necessárias. Anteriormente, existiam alguns entraves para a adoção de bebês negros ou pardos, mas essa realidade mudou ao longo dos anos a partir da conscientização de que filho não se escolhe”, conta.
Segundo ela, o maior desafio atualmente é a colocação de crianças a partir dos 6 anos, grupos de irmãos ou crianças portadoras de deficiência ou doenças incuráveis. “As adoções necessárias hoje englobam justamente crianças mais velhas, grupos de irmãos e crianças com doenças ou deficiências, independentemente da raça”, afirma.
Enquanto 65.83% das crianças e dos adolescentes possuem irmãos, 69.45% do total de pretendentes não aceitam irmãos. Os pretendentes que querem crianças com até 6 anos representam apenas 7.36% e o número cai para 1.04% quando a criança completa 10 anos de idade. Silvana destaca que a dificuldade de colocação de crianças mais velhas não é somente “culpa” do perfil de habilitados, mas também da morosidade das ações de destituição de poder familiar.
“Se as ações tramitarem no prazo previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que é de 120 dias, e se magistrados e membros do Ministério Público pararem de buscar incessantemente por laços de sangue despidos de afeto, as crianças serão disponibilizadas mais cedo e mais cedo serão inseridas em família. Lamentavelmente, existem operadores da área da infância que tratam as crianças como objeto das famílias de origem e não como sujeitos de direito, e, numa interpretação distorcida do que significa esgotar as possibilidades de reinserção familiar, terminam por esgotar a infância e por retirar da criança e do adolescente o direito de ser filho”.
A promotora de Justiça Daniela Moreira da Rocha Vasconcellos (RJ) atribui a demora no julgamento das ações de destituição do poder familiar e de adoção à falta de aparelhamento e estrutura das Varas de Infância e Juventude e um apego “excessivo” às origens genéticas, em detrimento da priorização da formação de vínculos saudáveis para crianças e adolescentes.
“Não há dúvida que esforços devem ser envidados para o retorno da criança à sua família de origem, com investimentos na família biológica para que isto ocorra de forma saudável, todavia isso deve ser feito a não perder de vista o 'tempo da criança', que não é o mesmo de um adulto e que milita contra ela, eis que, quanto mais cresce, mais difícil se torna a sua colocação em uma família adotiva”, diz.
Para a ministra Nancy, ainda existem muitos entraves legais e burocráticos num processo de definição jurídica para uma criança ser considerada disponível para adoção. “A lei estabelece que os vínculos biológicos devem ser prestigiados e os pais biológicos, ou a família extensa, devem ser consultados e preparados. Nesse período, a criança permanece acolhida e o Ministério Público fica na dúvida em propor a ação de destituição do poder familiar. Ainda temos no Brasil uma mentalidade de favorecer a família biológica, em detrimento do direito da criança em ter uma família real. Temos de frisar que os tempos são diferentes para as crianças, para os adultos e para os processos. Acima de qualquer tempo, está a criança”, diz.
“Não faz sentido buscar parentes distantes, que a criança sequer conhece, por mero apego à genética, enquanto o tempo da criança se esvai, principalmente quando a experiência demonstra que grande parte dessas guardas 'impostas pela justiça', muitas vezes terminam em devolução, principalmente quando se inicia a adolescência e os problemas de relacionamento se agravam. Quando isso acontece, as chances de adoção daquela criança e daquele adolescente serão muito escassas e estarão condenados a crescer em serviços de acolhimento”, reflete Daniela Vasconcellos.
Outro problema, segundo a promotora, é a retirada de crianças que estão sob a guarda provisória da família adotiva. “Embora sempre exista o risco jurídico na colocação de crianças em família substituta antes do julgamento final da causa, não se pode perder de vista que o Juiz apenas deve dar tal decisão quando o conjunto probatório dos autos demonstra que as chances de retorno à família biológica são praticamente nulas”, explica.
A contínua ruptura de vínculos na infância gera traumas que muitas vezes são permanentes e afetarão a saúde mental daquele indivíduo para o resto da vida, afirma Daniela. “Não podemos utilizar crianças como ratos de laboratório: vamos tentar um pouco com a mãe biológica. Não deu certo; um pouco com a tia; um pouco com a avó. Depois, finalmente, com uma família adotiva. Estas crianças, que não conseguem estabelecer vínculos permanentes, terão imensa dificuldade de vinculação, testarão muito mais aqueles que se dispuserem a cuidar delas e correm grandes riscos de desenvolver problemas psiquiátricos”, alerta.
A solução, segundo ela, é criar mecanismos para acelerar os processos de adoção e de destituição de poder familiar, como o Projeto Adoção em Pauta do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), um esforço concentrado que mobiliza os magistrados para proferir sentenças de adoção - mais de 450 sentenças já foram proferidas de janeiro a abril deste ano, segundo levantamento do TJRJ. Além disso, é importante capacitar juízes, promotores e de todos aqueles que operam nessa área, de modo a não perderem de vista que a criança deve ser o foco de qualquer processo judicial em trâmite nas Varas de Infância e Juventude e que seus interesses devem ser sempre o foco de qualquer decisão.
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