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A força viva da Constituição - Entrevista com o professor Luiz Edson Fachin sobre o tema do VIII Congresso Brasileiro de Direito de Família
Convite aceito, Fachin nos oferece a possibilidade de pensar essa relação entre o público e o privado sem antagonismos, mas como duas instâncias "igualmente fundamentais à adequada tutela do sujeito concreto, do ser humano único, dotado de vicissitudes e inserto em um ambiente familiar próprio".
O maior desafio, no entanto, tem sido estabelecer esses limites entre o público e o privado, ou seja, em conhecer e definir, na prática, a área de atuação do Estado. Mas, para Fachin, este impasse - ou ambivalência - encontra a sua medida de identificação na própria Constituição Federal, "aquela que emerge da força viva constitucional, da prática da Constituição, e não apenas do texto constitucional".
Segundo ele, são esses princípios constitucionais vividos e construídos que possibilitarão ao jurista averiguar a necessidade ou não de intervenção do Estado - "que deve se guiar por uma ética da responsabilidade tendo como limite precisamente o espaço da liberdade do sujeito".
Estes são alguns dos assuntos da entrevista, antecipando discussões do congresso.
Primeiramente, gostaria de saber por que o IBDFAM escolheu "Família - Entre o público e o privado" como tema do VIII Congresso Nacional. Os profissionais de Direito de Família têm percebido algum grande descompasso na relação entre o Estado e as famílias brasileiras?
A oportuna e necessária escolha do tema se deu como decorrência natural das práticas e dos desenvolvimentos teóricos levados a efeito nos dias atuais no Direito de Família brasileiro. São diversos fatores que colocam na cena do debate a relação entre o público e o privado na perspectiva da família brasileira, dentre eles: a ausência do Estado quando necessário e imprescindível (por exemplo, na prestação jurisdicional que deveria ser efetiva e rápida, especialmente em defesa das crianças e dos adolescentes), a presença superlativada do Estado em alguns setores legislativos (por exemplo, impondo deveres na comunhão de vida dos adultos, infantilizando-os), e também para realçar a relevância de novos espaços de solução de conflitos como a mediação e a conciliação.
Em seu artigo "Famílias: entre o público e o privado; problematizando espacialidades à luz da fenomenologia paralática", publicado na edição 23 (agosto/setembro 2011) da Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões (IBDFAM/Magister), o senhor chama atenção para o fato de que o público e o privado não são necessariamente instâncias antagônicas - mas simultâneas e complementares - que exigiriam normas e medidas diferenciadas em Direito de Família. A distinção de tratamento e interferência do Estado na vida privada estaria necessariamente na condição de vulnerabilidade do sujeito?
A resposta não é simples para essa complexa pergunta que envolve a formação dos conceitos de direito subjetivo, Direito Público e Direito Privado. Em termos sucintos, é possível responder afirmativamente à pergunta, com alguns temperamentos. A rigor, o sujeito, assim tomado sob tal condição estrutural, pessoal e histórica, se firma precisamente na superação de sua vulnerabilidade. Por isso, o sujeito se constrói, se afirma, se consolida. Como vivemos numa sociedade desigual que se articula com instâncias díspares de poder nos mecanismos públicos, o Estado (incluindo o Poder Judiciário), na defesa das minorias, dos assujeitados, dos submetidos a condições históricas de opressão e subordinação, se torna necessário por meio da gestão pública promocional, da prestação jurisdicional e das leis. Logo, a artificialidade da dicotomia que fundou o nascimento do Direito moderno servia para afastar o Estado-juiz da aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas. Portanto, à luz da complexidade, o público e o privado formam ambiências que demandam medidas diferenciadas, especialmente no Direito de Família cuja formação história esteve centrada na patriarcalidade.
Além das crianças, adolescentes e idosos, já protegidos por legislação específica, quais seriam os demais indivíduos passíveis de maior intervenção estatal? Os portadores de doenças mentais, as vítimas de violência familiar?
Sim, sem dúvida. Em um passado não tão distante, já ao início do último decênio, em 2001, o Estado brasileiro deu um importante passo quanto à política pública de tratamento à saúde, com a promulgação da Lei nº 10.216. Em igual passo, a Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) vem sendo objeto de relevantes proposições para alteração de sua estrutura legal, mais precisamente em seu artigo 12º, onde se pretende extrair a necessidade de redução a termo da representação em momento da confecção do boletim de ocorrência ante a constatação da violência e ao tratamento de ação penal incondicionada a todos os delitos praticados na esfera familiar.
Podemos inferir que o Legislativo, através de leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, a Lei Maria da Penha e a Lei antimanicomial de certo modo demarcaram espaços entre o público e o privado em âmbito familiar? Ou seja, indicam as instâncias nas quais o Estado deve assumir maiores responsabilidades e atuar de forma mais objetiva?
Em termos gerais, a atuação legislativa promocional opera por meios de mecanismos jurídicos como aqueles mencionados na pergunta. Em termos específicos, dois desafios sempre emergem: encontrar coerência na linha do tempo nessas todas proclamações legislativas, o que nem sempre há, e ainda reconhecer que às vezes a proteção é o espelho invertido do real, isto é, a lei não passa de um discurso jurídico especular ao avesso. Para "tapar" a lacuna do real (a falta de uma real e efetiva atenção a certos segmentos), pode ser mais simbólico editar uma lei que alterar um orçamento, mudar uma cultura, instaurar um debate que pressupõe vivencia verdadeiramente democrática, e assim por diante. O Brasil, nesse sentido, é uma sociedade apenas aparentemente tolerante, pois é, a rigor, profundamente autoritária: benevolente na conjuntura, quase intocável na estrutura.
Nesse sentido, a publicização é a garantia de responsabilidade do Estado e da liberdade positiva desses sujeitos?
Liberdade e responsabilidade são dois vetores aí muito bem inseridos; realmente são os dois elementos que devem servir de guias para a presença maior ou menor do Estado. O Estado deve se guiar por uma ética da responsabilidade tendo como limite precisamente o espaço da liberdade do sujeito. Assim, a publicização, de per se, não garante a liberdade, pelo contrário, pode servir ao seu hipertrofiamento. Deve-se, pois, arrostar a complexa tarefa de definir quando e como intervir na Família ao respeito à liberdade positiva dos sujeitos, compondo-se, com isso, à luz do pensamento de Slavoj Zizek, um fenômeno paralático, não passível de simplificações e de reducionismos, que comporta dois lados incompatíveis dentro de um mesmo nível, mas que, justamente por serem dois lados do mesmo fenômeno, nunca poderão se encontrar, embora sejam igualmente fundamentais à adequada tutela do sujeito concreto, do ser humano único, dotado de vicissitudes e inserto em um ambiente familiar próprio.
De certo modo, não haveria o risco de abuso de essa intervenção do Estado também em relação aos grupos vulneráveis? Cito como exemplo a obrigatoriedade de pessoas com mais de 70 anos contraírem matrimônio em regime de separação de bens. Em tese, seria um recurso para proteger os idosos. Mas, na prática, resulta em uma certa invasão da vida privada...
Exagerar na ingestão da dose do remédio não corresponde a invalidar a prescrição médica do tratamento! E é evidente que tal regra representa uma invasão indevida do Estado-legislador, mas devemos olhar esse texto normativo a partir de suas raízes históricas, para compreendê-lo hoje mais injustificável que nunca, ainda que, em momentos pretéritos, emergisse de uma cultura que se projetava com sentido na lei; daí a importância dos princípios constitucionais, que possibilitarão ao jurista, segundo um juízo crítico racional de ponderação, atento à conformação do direito na realidade, averiguar a necessidade ou não de intervenção do Estado nas relações familiares. Eis desafio que afasta reducionismos e simplificações.
Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal fundamenta as legislações dedicadas aos grupos vulneráveis, garantindo-lhes a "liberdade positiva", assegura aos não tutelados direitos à privacidade e a liberdades individuais. Seriam, ao mesmo tempo, a Constituição Federal e as legislações dedicadas aos grupos vulneráveis os princípios e normas balizadoras da atuação do Estado em âmbito privado? Seria essa a combinação possível?
Sim, sem dúvida. O Estado é regido e limitado pela Constituição. Nada obstante, a Constituição não é apenas o texto normativo. Falo da Constituição real, aquela que emerge da força viva constitucional, da prática da Constituição, e não apenas do texto constitucional. Nesse sentido, mostra-se pertinente e coeva, ainda em nossos dias, a lição alicerçada pelo Professor Konrad Hesse, onde se percebe que,mesmo que o Texto Constitucional não possa, apenas por si, concretizar seu conteúdo programático, pode faticamente impor tarefas. Assim, a Constituição tornar-se-á força ativa na vontade cotidiana de sua construção. Eis que é importante remarcar que, faticamente, uma Constituição não nasceConstituição, mas faz-se Constituição.
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