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STJ mantém união estável póstuma; voto divergente cita doutrina de jurista do IBDFAM
Atualizado em 11/12/2026
Decisão reacende debate sobre autonomia afetiva, limites da união estável e papel do STJ na análise de provas
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ negou provimento ao recurso especial que contestava o reconhecimento de união estável póstuma entre um homem já falecido e uma mulher. Por maioria, prevaleceu o voto da relatora, ministra Daniela Teixeira. Ficaram vencidos dois ministros, entre eles a ministra Nancy Andrighi, cujo voto divergente citou doutrina do jurista Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – IBDFAM.
A ação foi proposta pelo irmão do falecido, que buscava na Justiça a declaração de inexistência da união estável do irmão com a mulher. Na primeira instância, o pedido foi aceito. A mulher, então, apresentou uma reconvenção e recorreu. Ao analisar a apelação, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS reformou a decisão e reconheceu a união estável por haver “fortes provas de vida em comum”.
O irmão levou o caso ao STJ alegando que o acórdão do Tribunal gaúcho foi omisso, não teve fundamentação adequada e desrespeitou artigos do Código de Processo Civil – CPC.
Como votou a relatora?
Ao analisar o caso, a ministra Daniela Teixeira afirmou que o recurso especial não poderia ser conhecido por deficiência processual. Segundo ela, o recorrente sustentou que o Tribunal de origem não teria analisado argumentos relevantes, mesmo após embargos de declaração. Além disso, o acórdão recorrido seria "claro, devidamente fundamentado e enfrenta todas as questões necessárias ao deslinde da controvérsia".
A ministra observou que o acórdão do TJRS não tratou dos dispositivos legais apontados como violados, o que impediria o prequestionamento – requisito indispensável para interposição do recurso especial. Lembrou ainda que a jurisprudência do STJ exige prequestionamento explícito ou implícito, o que não se verificou.
Daniela Teixeira pontuou ainda que a indicação de uma extensa lista de artigos supostamente violados do CPC, entre outros, costuma ser sinal de que nenhum deles foi efetivamente debatido pelo Tribunal de origem. "Quando a gente vê essa quantidade de artigos violados por um só acórdão, parece orégano: joga assim. Já é indício forte de que nada disso foi prequestionado", afirmou.
A ministra também apontou óbice adicional. Segundo ela, para alterar a conclusão do TJRS sobre a existência ou não de união estável, seria necessário reexaminar o conjunto fático-probatório, providência vedada em recurso especial, diante da Súmula 7 do STJ.
Com isso, ela votou por não admitir o recurso e manter o reconhecimento da união estável tal como decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O voto foi acompanhado pelos ministros Humberto Martins e Ricardo Villas Bôas Cueva.
Voto divergente
A ministra Nancy Andrighi abriu divergência ao afirmar que a união estável exige, além de convivência pública e duradoura, a intenção de formar família, requisito subjetivo que não se confunde com namoro ou noivado. Baseada na doutrina do jurista Rolf Madaleno e em precedentes da própria Terceira Turma, ela afirmou que uma relação longa e pública não basta para caracterizar entidade familiar sem essa vontade comum.
Para Andrighi, o caso revelava apenas um relacionamento amoroso, sem provas do elemento subjetivo. Ela mencionou que o falecido se declarava solteiro para a Receita Federal, o casal morava em endereços diferentes e as fotografias, testemunhos e mensagens analisadas não comprovaram intenção de constituir família. Criticou ainda o peso dado pelo TJRS a mensagens afetuosas e encontros ocasionais, considerados insuficientes para reconhecer união estável.
A ministra ressaltou que sua análise não reexaminou provas, mas reavaliou juridicamente fatos já descritos, o que é permitido pelo STJ. Concluiu pela impossibilidade de reconhecer a união estável e votou por restabelecer a sentença que a afastou. O ministro Moura Ribeiro acompanhou a divergência.
Limites da autonomia afetiva
O jurista Rolf Madaleno avalia que a decisão do STJ reacende um debate sobre os limites da autonomia afetiva e a necessidade de o Direito acompanhar as transformações nas formas de se relacionar. Para ele, a legislação e a jurisprudência ainda não oferecem respostas adequadas à realidade atual, em que muitos casais optam por vínculos afetivos sem os efeitos jurídicos da união estável.
“É cada vez mais evidente que muitas pessoas – especialmente aquelas que já viveram outros casamentos – preferem estabelecer novas relações sem o compromisso de uma união estável. A grande demanda por contratos de namoro é uma prova contundente disso. O que falta à legislação e à jurisprudência brasileiras é reconhecer que, em um contexto de crescente autonomia privada, essas pessoas têm o direito de não querer constituir uma união estável com efeitos jurídicos, como partilha de bens e pensão alimentícia”, afirma.
O especialista alerta que a falta de alternativas claras no ordenamento jurídico pode produzir o efeito contrário ao desejado por muitos casais que optam por vínculos afetivos mais livres. Além disso, a aproximação crescente entre união estável e casamento, segundo ele, tem levado a um cenário de tutela excessiva, que desconsidera escolhas legítimas de autonomia.
“Falta essa ‘terceira via’. É preciso observar os sinais exteriores que essas pessoas demonstram: muitas vezes, não coabitam – seja porque têm filhos pequenos de relações anteriores, seja porque, mesmo na vida adulta, optam por residir separadamente. Podem viajar juntas, podem ter um namoro muito duradouro, porque isso faz parte da natureza de algumas relações”, explica.
O jurista defende que esses relacionamentos e seus sinais exteriores precisam ser examinados com cuidado, especialmente quanto à vontade efetiva das partes.
“Isso se torna ainda mais importante quando se discute a existência ou não de uma união estável após a morte de um dos envolvidos, pois a ausência de uma das partes retira o direito de defesa e eleva o grau de exigência da análise”, diz. E questiona: “Se o casal realmente desejava constituir uma união estável, por que não formalizou isso em vida? Por que não houve um requerimento, ou mesmo uma declaração expressa de que não queriam assumir esse compromisso?”
Liberdade
O diretor nacional do IBDFAM observa que o debate sobre autonomia afetiva também envolve a liberdade das pessoas em definir como querem se relacionar e quais efeitos jurídicos desejam assumir. Para ele, o Direito não pode transformar escolhas pessoais em imposições tácitas, sobretudo quando sinais de autonomia são ignorados pela interpretação jurídica.
“Existe um temor real. As pessoas são gregárias por natureza, querem se relacionar, mas, cada vez menos, desejam os efeitos jurídicos desses vínculos: incursão sobre bens particulares que o outro não ajudou a construir; obrigação alimentar; pedidos de filiação socioafetiva por enteados”, pontua.
Rolf Madaleno cita o atual Código Civil para exemplificar que o cenário jurídico atual também influencia diretamente os receios de muitos casais quanto aos efeitos de suas relações. Segundo ele, mudanças legislativas e novas construções doutrinárias têm ampliado – e, em alguns casos, tensionado – as consequências possíveis de um vínculo afetivo.
“As pessoas não vão deixar de querer se relacionar afetiva e amorosamente, mas têm evitado compromissos jurídicos – muitas vezes, não morando juntas, o que para mim é um sinal claro de que não pretendiam constituir união estável. Esse afastamento demonstra a ausência de intenção de formar família”, explica.
E acrescenta: “A autonomia e a liberdade das pessoas deveriam receber mais atenção. Esse é o verdadeiro avanço do moderno Direito de Família. No entanto, o excesso de proteção, especialmente em situações mais graves, têm acabado por atrapalhar a liberdade relacional das pessoas”.
A atuação do STJ
O jurista também destaca os limites da atuação do STJ, especialmente em casos que dependem de uma avaliação mais profunda das circunstâncias fáticas. Para ele, há uma expectativa social equivocada sobre o papel da Corte, o que pode gerar frustração e injustiças quando questões relevantes não são examinadas em sua totalidade.
“O problema do Superior Tribunal de Justiça é que ele não é um Tribunal voltado para a análise de provas e fatos, mas exclusivamente para questões de direito. Isso é lamentável, porque, às vezes – e existe uma espécie de válvula de escape – o STJ acaba discutindo o valor dessas provas, a interpretação dos fatos. É a valoração da prova”, explica.
O especialista ressalta que, diante das limitações do STJ na análise de fatos, é fundamental preservar espaços excepcionais que permitam a revisão de situações concretas, sob pena de sacrificar a justiça em nome do excesso de formalismo. Segundo ele, algumas decisões só podem ser adequadamente compreendidas quando há abertura para examinar elementos além do estritamente jurídico.
“Hoje, muitas pessoas depositam no STJ a expectativa de ser a última instância para o reconhecimento integral de seus direitos, considerando tanto provas de fato quanto de direito. Mas isso não acontece: o Tribunal julga apenas questões jurídicas. Foi o que se viu neste caso — todas as tentativas de modificar a decisão do Tribunal estadual foram refutadas, sem que se avançasse sobre os fatos ou se discutisse a prova. Prevaleceu o julgamento técnico, com ausência dos pressupostos para uma decisão superior, como o prequestionamento, entre outros. Por isso, entendo que a valoração da prova precisa receber atenção muito especial. Certas circunstâncias exigem uma análise mais ampla e cuidadosa da prova como um todo”, conclui.
REsp 2.235.987
Por Guilherme Gomes
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