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Pessoa não binária consegue alteração de nome e gênero na Justiça; especialista comenta
No Piauí, uma pessoa não binária (que não se identifica nem com o gênero masculino nem com o feminino) conseguiu na Justiça a alteração de nome e gênero no registro civil. O caso contou com atuação da Defensoria Pública do Estado do Piauí – DPE-PI.
Conforme informações da DPE-PI, por meio do atendimento realizado pela Diretoria Itinerante, foi ajuizada ação em busca da alteração de nome e gênero para que a certidão de nascimento passasse a registrar a categoria “não binário”. Também foi solicitada a inclusão do sobrenome da avó materna.
A não binariedade é um termo guarda-chuva que abrange diversas identidades daqueles que não se percebem como exclusivamente pertencentes ao gênero que lhes foi atribuído. Isso significa que sua identidade e expressão de gênero não são limitadas ao binário masculino e feminino.
Após análise e acompanhamento da demanda, o defensor público Adriano Moreti, coordenador da Defensoria Itinerante, ingressou com a ação de retificação. O pedido teve como base princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade e no entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, que assegura às pessoas não binárias o direito de ajustar seu registro civil conforme sua autopercepção.
O juiz responsável pelo caso destacou que a solicitação não fere a segurança jurídica nem o interesse de terceiros. Assim, determinou a atualização da certidão de nascimento para incluir o gênero “não binário” e o sobrenome de solteira da avó materna.
Não binário
A registradora Márcia Fidelis Lima, presidente da Comissão Nacional de Registros Públicos do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – IBDFAM, vê a decisão como “um passo significativo na afirmação dos direitos da população não binária no Brasil, pois faz exatamente aquilo que se espera do registro civil: espelhar, com fidelidade, quem a pessoa é”.
“Ao determinar que a certidão passe a trazer o marcador ‘não binário’ e, ao mesmo tempo, incluir o sobrenome da avó materna, o juiz reconhece a identidade de gênero e o pertencimento familiar como dimensões centrais da personalidade, que merecem tutela jurídica”, afirma.
Segundo Márcia, esse ponto é ainda mais relevante considerando a decisao administrativa de 2023 da Corregedoria Nacional de Justiça, segundo a qual não poderia, por simples ato normativo, autorizar os cartórios a lançarem ‘não-binárie’ (ou qualquer expressão equivalente) no campo ‘sexo’ dos assentos de nascimento, justamente por entender que o Provimento 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ deve seguir o modelo binário que decorre da ADI 4.275/DF.
“Extrajudicialmente, os oficiais de registro continuam vinculados ao binarismo; judicialmente, porém, abre-se um espaço em que juízes e tribunais podem se valer, no caso concreto, dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do livre desenvolvimento da personalidade”, explica.
A decisão do Piauí, avalia a registradora, mostra que é possível reconhecer a identidade não binária sem romper com a segurança jurídica nem com a técnica registral – inclusive utilizando as possibilidades de alteração de nome e sobrenome que hoje já existem nos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos.
Registros
Márcia Fidelis também esclarece que há atualmente uma base jurídica relativamente consolidada para a retificação de nome e gênero de pessoas trans em geral, especialmente dentro da lógica binária masculino/feminino. “A Constituição, as decisões do STF (como a ADI 4.275 e o RE 670.422) e o próprio Provimento 149/2023 do CNJ garantem que uma pessoa com mais de 18 anos de idade possa alterar prenome e gênero diretamente no registro civil, sem exigir cirurgia ou laudos patologizantes.”
“A Lei 6.015/1973, após ser reformada pela Lei 14.382/2022, também ampliou bastante a autonomia sobre o nome: o artigo 56 permite uma alteração imotivada de prenome, uma vez, na maioridade, e o artigo 57 abriu o leque para inclusão e exclusão de sobrenomes familiares e do cônjuge, o que, na prática, serve também a muitas pessoas trans e não binárias que buscam adequar o nome à sua identidade”, aponta.
Apesar disso, observa Márcia, há uma lacuna no que se refere ao direito das pessoas não binárias. “A decisão administrativa do CNJ em 2023 foi muito clara ao afirmar que, à luz do modelo binário adotado pelo STF, a Corregedoria Nacional não pode, sozinha, criar um terceiro gênero por provimento.”
“Isso significa que, para as pessoas não binárias, a via extrajudicial continua formalmente limitada a ‘masculino’ e ‘feminino’, embora seja perfeitamente possível ajustar prenome e sobrenomes pela LRP”, avalia.
O resultado, segundo a especialista, é um cenário de transição: “De um lado, temos uma base constitucional e jurisprudencial robusta — reforçada pelo entendimento recente do STJ que admite registro com gênero neutro — e, de outro, uma legislação e uma normatização administrativa que ainda não incorporaram explicitamente um terceiro marcador de gênero”.
“Nesse intervalo, decisões como a do Piauí ganham relevância, pois vão ocupando, pela via judicial, o espaço que a própria Corregedoria do CNJ reconheceu depender de atuação do Legislativo e das Cortes”, destaca a registradora.
Atualização
De acordo com a diretora nacional do IBDFAM, embora uma sentença proferida no Piauí não tenha efeito vinculante automático para todo o país, ela funciona como um precedente persuasivo importante para casos semelhantes em outros estados, por dois motivos: “Em primeiro lugar, dialoga diretamente com a jurisprudência superior – a Defensoria fundamenta o pedido nos princípios constitucionais e no entendimento já consolidado do STJ e do STF sobre identidade de gênero como aspecto da dignidade da pessoa humana, e o juiz mostra, na prática, que registrar o gênero ‘não binário’ não fere nem a segurança jurídica nem o interesse de terceiros; em segundo, a decisão explicita um caminho institucional coerente com o próprio CNJ. Se a Corregedoria Nacional se autolimita na via administrativa — ao afirmar que não pode, por provimento, ampliar as categorias de gênero além do binário —, ela, ao mesmo tempo, reconhece que a discussão deve seguir no Legislativo e nas instâncias jurisdicionais”, detalha.
Na visão da registradora, sentenças como essa ocupam exatamente esse espaço, “oferecendo parâmetros concretos para outros magistrados, defensorias e advocacias, bem como para outros profissionais do Direito que lidam diretamente com os direitos da personalidade, com identidade e com pertencimento social”.
Ela destaca ainda que, ao combinar o reconhecimento do gênero não binário com a inclusão do sobrenome da avó materna, a decisão mostra como é possível articular as novas demandas de identidade de gênero com os instrumentos já existentes na Lei de Registros Públicos, especialmente nos artigos 56 e 57, e nas regras do Provimento 149/2023 do CNJ.
“A tendência é que, à medida que esses casos se multipliquem, aumente também a pressão por uma atualização legislativa e normativa que incorpore, de forma expressa, as pessoas não binárias no sistema registral brasileiro”, conclui Márcia Fidélis.
Por Débora Anunciação
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