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TJMG diferencia filiação socioafetiva de adoção em caso de vínculo entre avós e neto
A 4ª Câmara Cível Especializada do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG entendeu, em julgado recente, que o reconhecimento de filiação socioafetiva multiparental dos avós não é necessariamente uma adoção avoenga. Neste sentido, o colegiado cassou uma sentença da Comarca de Diamantina e determinou o retorno dos autos ao juízo de origem para o processamento de uma ação de reconhecimento de multiparentalidade por vínculo socioafetivo.
No caso dos autos, um homem ingressou com ação de reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva para incluir em sua certidão de nascimento os nomes dos avós maternos, que o criaram e educaram desde pequeno. Assim, ele poderia ter assegurados os direitos de filho.
O autor alegou que nunca teve contato com seu pai biológico e tampouco manteve vínculo com a mãe biológica.
O juízo de origem concluiu que se tratava de adoção feita pelos avós (avoenga), prática vedada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e, por este motivo,extinguiu o processo sem resolução do mérito.
Ao recorrer, o homem alegou que sua petição inicial foi instruída com robusta documentação que comprova a existência inequívoca da relação de paternidade e maternidade afetiva entre ele e os avós biológicos maternos. Também defendeu que a única ressalva prevista na legislação é de que tal reconhecimento deve ser buscado pelas vias judiciais, uma vez que não se enquadra nas hipóteses de reconhecimento extrajudicial.
Relatora do caso, a desembargadora Alice Birchal, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, avaliou que é preciso distinguir a adoção avoenga e a hipótese de reconhecimento de filiação socioafetiva em multiparentalidade, fundamentada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ainda que entre avós e neto maior de idade.
Segundo a relatora, o artigo 1.593 do Código Civil determina: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Como a avó do autor já morreu, a magistrada afirmou que o reconhecimento post mortem (depois da morte) é viável no contexto da filiação socioafetiva.
A desembargadora determinou a cassação da sentença e o retorno dos autos à comarca de origem para regular instrução e julgamento. O processo tramita em segredo de Justiça.
Filiação
Em entrevista ao IBDFAM, a desembargadora Alice Birchal explica que o parentesco socioafetivo é uma construção doutrinária que se deu, nas décadas posteriores à CR/88, a partir do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa e da Igualdade da Filiação, a partir do acesso ao exame de DNA na busca da verdade “real da filiação biológica”.
“A prática forense dos inúmeros casos de ‘filhos registrados por pais não biológicos’ nos mostrou que não era salutar que o parentesco em linha reta de primeiro grau (e seus efeitos jurídicos) se estabelecesse pela biologia ou pela adoção. Era preciso que o Direito de Família estendesse a proteção especial do art. 226 da CR/88 às pessoas ‘tratadas como se filhos fossem pelo pai não biológico’”, observa.
Ela cita o texto “Desbiologização da Paternidade”, de 1979, do professor João Baptista Vilella. “O nome, complicado, foi rebatizado pelo IBDFAM como “filiação socioafetiva”.
“A semente da socioafetividade foi plantada na década de 1980… a partir dela, a árvore tem dado bons frutos. Ou seja, a ‘socioafetividade’, embora não me pareça um princípio, mas um valor jurídico de construção doutrinária (não infralegal), tem como alicerce os princípios constitucionais do Direito de Família e aplicação em inúmeros casos, pela jurisprudência especializada”, afirma.
Tribunais
De acordo com a desembargadora do TJMG, Alice Birchal, costumes locais e carga histórica na formação das famílias de cada região do Brasil interferem na percepção do Direito pelo julgador. Assim, ela afirma que há Tribunais mais abertos ao tema, enquanto outros são mais conservadores. “Por isso há muitas divergências, já que são assuntos sensíveis às estruturas organizacionais dos indivíduos que estão nas várias formas de convivência familiar.”
“No TJMG, temos duas Câmaras Especializadas em Direito de Família e Sucessões (só três Tribunais as têm), além das Turmas do 4.0. E, mesmo assim, divergimos muito em matérias como esta e divórcio potestativo, por exemplo”, analisa.
De acordo com ela, a unanimidade desse acórdão foi uma das exceções. “Como a família é a base da organização social (art. 226, CR/88), o julgador, ao reconhecer em sua decisão um outro ‘tipo de família’ – socioafetiva, avoenga – interfere nessa ‘organização’ e , por efeito de sua decisão, alguém a quem não era atribuído um direito especial, por estar fora dessa família posta na CR/88, passa a tê-lo.”
“No caso em questão, quem não era filho (descendente em primeiro grau) passou a ser e, com isso, terá direitos e deveres afetos aos direitos especiais como o de Família, o das Sucessões, o Previdenciário etc. Também por isso, ao decidirmos, temos que ter a responsabilidade de ponderarmos os efeitos que essa decisão trará não apenas ao ‘caso julgado’, mas à sociedade, já que traz um precedente que pode interferir na organização social e jurídica do país”, pondera.
Contemporaneidade
No contexto brasileiro, a desembargadora reconhece a evolução da temática e cita a própria trajetória como exemplo:
“Dou aulas de Direito de Família há 27 anos, advoguei por 21 anos; vim pelo quinto Constitucional e há 10 anos julgo processos de família. Portanto, há mais de 30 anos vejo que a jurisprudência é fonte formal para o Direito de Família, sim. Andamos muito e muito bem, com o trabalho do IBDFAM em defender ‘tantas novidades’, principalmente se nos compararmos aos países latino-americanos e europeus e nós mesmos no ‘antes e pós-CR/88’.
Ela complementa:
“Iniciei minha advocacia e docência ainda quando o tema da divergência jurídica era se a união estável (heterossexual) tinha o mesmo status jurídico que o casamento. Depois a luta pela igualdade do casamento e da união estável homossexual. Por diversas vezes alunos saíam de minhas aulas quando juridicamente eu defendia a adoção pelo par homossexual. Ou seja, todas essas formas familiares tiveram seus direitos assegurados nos últimos 20 anos. A jurisprudência lhes atribuiu dignidade e, na sequência, a legislação ordinária foi alterada para incorporar várias dessas decisões judiciais aos textos legais ou o STF as sumulou! Essa é a consolidação do princípio da dignidade nas relações familiares.”
Diferenciação
“Esse julgado do Tribunal da Justiça de Minas Gerais joga luz sobre uma relevante diferenciação na questão dos vínculos filiais socioafetivos que, muitas vezes, são equivocadamente tratados como uma situação de adoção”, observa o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
O advogado explica que, embora as temáticas possam ter alguns pontos de contato e algumas situações concretas similares, os pleitos de reconhecimento de filiações socioafetivas ou de adoção são diferentes.
Segundo Calderón, a principal diferença é o fato de que o reconhecimento da filiação socioafetiva exige uma comprovação retrospectiva de uma convivência afetiva por longo período, de modo público, contínuo e duradouro, “com uma convivência filial claramente demonstrada aliada a manifestação de vontade dos envolvidos no reconhecimento desta vinculação”.
Ele acrescenta: “Por outro lado, a adoção nem sempre exige esse histórico retrospectivo de uma convivência prévia, sendo que ela é possível inclusive de ser prospectiva, ou seja, de um pleito para que venha prospectivamente gerar um relacionamento após o reconhecimento da adoção por uma decisão judicial”.
Uma segunda diferenciação, explica o advogado, é que a adoção, em regra, interrompe vínculos anteriores existentes, enquanto na filiação socioafetiva, em regra, o reconhecimento apenas inclui mais um ascendente, sem exclusão dos genitores ou dos pais registrais.
“Uma terceira grande distinção é que a adoção possui regramento próprio e juízos específicos, em grande parte das cidades, que são responsáveis por promover esses processos com toda a sua especificidade legal e procedimental. Por outro lado, os pleitos de filiação socioafetiva não possuem essa mesma vinculação legal. Possuem, efetivamente, uma previsão legal no artigo 1.593, Código Civil, que trata do parentesco natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem, mas a filiação socioafetiva estaria sujeita aos dispositivos legais do Código Civil no Livro de Família e à diretrizes lançadas pela doutrina e jurisprudência e, muitas vezes, acabam sendo encaminhadas e julgadas pela própria Vara de Família e não é por Varas de Infâncias, mesmo em cidade onde há essas divisões entre os órgãos julgadores”, observa o especialista.
Por Débora Anunciação
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