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STJ reconhece união estável homoafetiva pós-morte e relativiza publicidade
Atualizada em 06/11/2025
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, em decisão unânime, reconheceu uma união estável homoafetiva post mortem e admitiu a relativização do requisito de publicidade em razão de contexto social discriminatório.
O caso envolvia a validade de uma união estável entre duas mulheres, uma delas falecida, que conviveram por mais de 30 anos no interior de Goiás. O reconhecimento da união havia sido negado na origem, sob o argumento de ausência de publicidade do relacionamento.
Relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi destacou que a exigência desse requisito deve ser interpretada à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da liberdade individual.
Nancy Andrighi pontuou ainda que negar o reconhecimento da união estável homoafetiva pela falta de publicidade seria "invisibilizar uma camada da sociedade já estigmatizada, que muitas vezes recorre à discrição como forma de sobrevivência".
Em seu voto, a ministra afirmou ser possível relativizar a publicidade quando comprovada a convivência contínua, duradoura e com comunhão de vida e interesses, conforme o artigo 1.723 do Código Civil.
O colegiado reconheceu a união estável post mortem entre as companheiras, consolidando a orientação do STJ de ampliar a proteção jurídica a relações afetivas marcadas por discrição imposta por contextos sociais ou culturais.
O advogado André de Almeida Dafico Ramos atuou no caso. Segundo ele, a decisão, não dispensou a caracterização do requisito legal da publicidade, previsto expressamente no artigo 1.723 do Código Civil. “Ao contrário, reafirmou sua importância jurídica, mas reconheceu que a publicidade deve ser interpretada em harmonia com os direitos constitucionais à intimidade e à privacidade, sobretudo em relações homoafetivas, nas quais, não raro, a publicidade da relação colocaria o casal em situações de extrema vulnerabilidade e, em casos extremos, até de violência.”
Marco significativo
Para o advogado, a decisão representa um marco significativo na defesa do direito das minorias. “Ao reconhecer que a publicidade não deve ser aferida tendo por base um padrão abstrato de exposição social, mas por meio de uma avaliação concreta, que considere os motivos que levaram à discrição, entre eles o medo, a ameaça e a violência simbólica e material decorrentes da homofobia, permite que a interpretação do requisito legal da publicidade seja orientada por um olhar humanizado, sensível às especificidades da vida real e às estruturas sociais que ainda impõem o silêncio a muitas relações.”
“O que se concretiza neste julgamento é a aplicação do Direito que transcende a letra fria da Lei e resgata sua função mais nobre: promover justiça com humanidade. A sociedade que reprime e pune é a mesma que, de modo contraditório, exige a publicidade dos relacionamentos homoafetivos para lhes conceder validade. Essa contradição revela a necessidade de repensar os parâmetros interpretativos, compreendendo que exigir publicidade ampla é ignorar a realidade homofóbica presente na sociedade, revelando a manutenção das estruturas do conservadorismo heterossexual normativo”, observa.
O advogado ressalta que o acórdão não elimina a técnica jurídica, “mas a aprimora, trazendo-a para o campo da efetividade dos direitos fundamentais”.
“A decisão da Terceira Turma é, antes de tudo, um marco de sensibilidade e de reconhecimento da pluralidade das formas de amar. Ela reafirma que o Direito deve servir à vida e não o contrário. Se não fosse a coragem da autora da ação, que lutou pelo reconhecimento de seus direitos e enfrentou o peso da invisibilidade, muitos talvez não pudessem viver o amor com a liberdade e a proteção jurídica que têm hoje. Sua história simboliza a resistência e abre caminho para que outras pessoas possam existir e amar com dignidade”, reconhece.
André de Almeida Dafico Ramos acredita que, mais do que uma vitória individual, trata-se de uma vitória civilizatória. “O julgamento reafirma que a interpretação do artigo 1.723 do Código Civil deve refletir a realidade contemporânea e que a publicidade, enquanto elemento da união estável, não pode ser exigida em padrões de exposição incompatíveis com o contexto de discriminação estrutural que persiste. O Direito não pode exigir coragem onde a sociedade impõe medo.”
“Este precedente reafirma a função humanizadora da Justiça e consolida o compromisso do Poder Judiciário com a igualdade substancial e com a efetiva proteção das famílias em todas as suas formas de expressão”, pontua.
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Para o jurista Rolf Madaleno, diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões – IBDFAM, a decisão é inovadora e extremamente relevante, pois reconhece e consagra os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da isonomia e da liberdade individual.
Rolf explica que a decisão relativiza um dos itens necessários do estabelecimento, do reconhecimento da existência de uma união estável: “a publicidade, ou seja, que todos saibam que eles vivem como se casados fossem”.
De acordo com o jurista, para que uma relação de união estável seja reconhecida judicialmente na falta de algum documento, é preciso que haja entre os requisitos do artigo 1.723 do Código Civil a demonstração de que se trata de uma convivência pública, contínua e duradoura. “As pessoas do entorno deste casal devem ter conhecimento de que se trata de um casal.”
Rolf explica que relações homoafetivas eram mantidas com maior discrição em razão da discriminação.
“Em 2010, já existia o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal – STF das uniões homoafetivas, mesmo assim, no Censo de 2010 existiam apenas 58 mil casais homoafetivos. Em 2022, o Censo constatou a existência de 480 mil uniões homoafetivas, ou seja, um crescimento oito vezes maior. Isso demonstra que, cada vez mais, as pessoas estão podendo demonstrar suas relações”, avalia.
O jurista conclui que o cenário tende a mudar ainda mais. “Talvez, no próximo Censo, tenhamos um aumento exponencial da publicidade destes relacionamentos e a discrição dessas relações diminua ainda mais, pelo que verificamos no dia a dia. Esses casais que já circulam livremente em lugares públicos sem constrangimento, sem se sentirem oprimidos, exercendo a liberdade de amar e de ser amado”.
REsp 2.203.770/GO
Por Débora Anunciação
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