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STF decide que indícios de violência doméstica impedem repatriação imediata de crianças

O Supremo Tribunal Federal – STF julgou parcialmente procedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs 4.245 e 7.686 e fixou o entendimento de que, nos casos em que houver indícios de violência doméstica, crianças trazidas ao Brasil por um dos genitores, sem a anuência do outro, não devem ser automaticamente repatriadas. O julgamento, que discutiu pontos da Convenção da Haia, começou em fevereiro passado e chegou ao fim na tarde desta quarta-feira (27).
Os ministros acompanharam o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que reconheceu a compatibilidade da Convenção da Haia com a Constituição Federal e contra a possibilidade do retorno imediato de crianças e adolescentes ao exterior em casos de indícios de violência doméstica e familiar.
Foi fixada a seguinte tese:
- A Convenção da Haia de 1980 sobre os aspectos civis da subtração internacional de crianças é compatível com a Constituição Federal, possuindo status supralegal no ordenamento jurídico brasileiro, por sua natureza de tratado internacional de proteção de direitos da criança;
- A aplicação da Convenção no Brasil, à luz do princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF), exige a adoção de medidas estruturais e procedimentais para garantir a tramitação célere e eficaz das ações sobre restituição internacional de crianças;
- A exceção de risco grave à criança, prevista no art. 13 (1) (b) da Convenção da Haia de 1980, deve ser interpretada de forma compatível com o princípio do melhor interesse da criança (art. 227, CF) e com perspectiva de gênero, de modo a admitir sua aplicação quando houver indícios objetivos e concretos de violência doméstica, ainda que a criança não seja vítima direta.
Além da tese firmada, a Corte estabeleceu uma série de medidas estruturais e procedimentais para garantir mais eficiência nos processos de restituição internacional.
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ terá 60 dias para criar um grupo de trabalho interinstitucional encarregado de propor uma resolução que assegure maior celeridade a esses processos, com prazo máximo de um ano para decisão final.
Os Tribunais Regionais Federais – TRFs deverão concentrar a competência em varas e turmas especializadas, além de instituir núcleos de apoio técnico para conciliações, perícias psicossociais e práticas restaurativas.
Outra determinação é a inclusão, nos sistemas processuais eletrônicos, de um selo de tramitação preferencial para ações relacionadas à Convenção da Haia.
Ao Poder Executivo, caberá fortalecer a atuação da Autoridade Central Administrativa Federal, estabelecer metas e indicadores de desempenho e elaborar, por meio do Itamaraty, protocolo de atendimento a mulheres e crianças vítimas de violência doméstica em consulados brasileiros, tomando como base o modelo já existente em Roma.
O Poder Judiciário, por sua vez, deverá avaliar a conveniência de adesão do Brasil à Convenção da Haia de 1996, com a obrigação de encaminhar um relatório técnico aos chefes dos três Poderes.
Já o Congresso Nacional foi instado a discutir a criação de legislação específica para regulamentar a aplicação da Convenção da Haia de 1980, especialmente em relação a aspectos processuais e probatórios.
Por fim, os TRFs e os Tribunais de Justiça – TJs deverão firmar acordos de cooperação judiciária para unificar protocolos de atuação em casos de subtração internacional de crianças, inclusive com o compartilhamento de informações e equipes multidisciplinares.
Voto do relator
Em seu voto, Barroso declarou que a violência de gênero, em especial contra mulheres migrantes, é de difícil comprovação devido ao ambiente doméstico, isolamento da vítima e barreiras culturais e linguísticas. Por isso, a negativa de retorno deve se basear em indícios e elementos objetivos que deem plausibilidade à alegação de risco grave.
O ministro destacou ainda que a demora do Brasil em executar decisões de restituição internacional compromete a efetividade da Convenção e afeta a imagem do país no cenário internacional. Ele defendeu, assim, medidas estruturais, como a criação de um grupo de trabalho no CNJ para propor resoluções que agilizem a tramitação desses processos e a concentração de sua análise em varas federais e turmas especializadas.
A ADI 7.686 contou com a atuação do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM como amicus curiae. Representado por sua vice-presidente, a jurista Maria Berenice Dias, o Instituto defendeu, em sustentação oral, que a repatriação não deve ser determinada em casos de violência doméstica, pois a situação afeta direta ou indiretamente mães e filhos.
Julgamento
A análise da matéria começou em 6 de fevereiro, com as apresentações das sustentações orais, e foi retomada no dia 13 de agosto, com o voto do relator.
Na sessão do dia 20 de agosto, Dias Toffoli defendeu uma interpretação evolutiva da Convenção, ressaltando que indícios mínimos de violência no exterior devem impedir o retorno da criança, e propôs medidas estruturais, como protocolos de atendimento à brasileiras vítimas de violência e ajustes normativos.
Flávio Dino acompanhou o relator, reforçando que o retorno imediato não deve ser automático e defendendo o contraditório, a ampla defesa e a atuação adequada da Defensoria Pública.
Cristiano Zanin sugeriu a criação de um rito mais claro no Brasil, permitindo exceções em casos de violência doméstica, apresentando cenários práticos para magistrados e limitando a competência brasileira a situações excepcionais.
André Mendonça destacou que a violência contra a mãe afeta diretamente a criança, apoiou a criação de protocolos diplomáticos de atendimento e defendeu atuação cautelosa da Advocacia Geral da União – AGU em casos de violência, alinhando seu voto às contribuições de Toffoli e Zanin.
Provas consistentes
Na sessão plenária do dia 21 de agosto, o ministro Kássio Nunes Marques apresentou voto em defesa de que a exceção ao retorno imediato de crianças, prevista na Convenção da Haia, só seja aplicada mediante provas consistentes de violência doméstica, e não apenas indícios. Ele destacou a relevância de documentos médicos e escolares, a atuação integrada de órgãos nacionais e o uso da mediação online como forma de garantir celeridade sem comprometer a justiça.
Para o ministro Alexandre de Moraes, não é possível analisar o tema sem levar em conta o machismo estrutural que leva mães de todo o mundo a voltarem a seus países com os filhos. “Quase 80% dos responsáveis pela retenção ilícita de crianças são mulheres. Por que isso não ocorre em relação aos pais? Porque é uma questão do patriarcado”, disse.
Ao acompanhar o relator, o ministro Edson Fachin citou estudo divulgado pelo Instituto Alana, segundo o qual 88% das mulheres envolvidas em processos de sequestro internacional de filhos são vítimas de violência doméstica, o que justifica a intervenção do STF nesta matéria. O ministro Luiz Fux votou no mesmo sentido.
Perspectiva de gênero
Na sessão de 27 de agosto, a ministra Cármen Lúcia destacou que o julgamento afeta diretamente mulheres e crianças, ainda vistas como objetos na sociedade, e lembrou os altos índices de feminicídio no Brasil. Para ela, proteger a criança inclui resguardar o ambiente doméstico e evitar a revitimização da mãe que foge da violência. Defendeu garantias processuais desde o início, como contraditório, ampla defesa e escuta da mãe e da criança, e acompanhou o relator ao afirmar que a violência doméstica contra a mãe é motivo suficiente para impedir o retorno da criança ao exterior.
Na mesma sessão, o ministro Gilmar Mendes também acompanhou o voto de Barroso, mas com ressalvas. Para ele, não há necessidade de declarar a inconstitucionalidade parcial da Convenção da Haia, já que o próprio artigo 13.1.b permite afastar o retorno da criança em casos de violência doméstica. Ele alertou para que as exceções sejam interpretadas de forma restritiva, mas reconheceu que indícios objetivos de violência contra a mãe configuram risco grave. Ele apoiou medidas para dar celeridade aos processos, mas divergiu da proposta de interpretação conforme, entendendo que a previsão já está no texto da Convenção. Também destacou a obrigatoriedade do uso do Protocolo de julgamento com perspectiva de gênero do CNJ.
Por Guilherme Gomes
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