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Guiné-Bissau enfrenta altos índices de mutilação genital feminina apesar de lei contra a prática

Mitos e tabus contribuem para a manutenção da prática, analisa a presidente do núcleo do IBDFAM no país
Em Guiné-Bissau, mais da metade das mulheres e meninas entre 15 e 49 anos já foi submetida à mutilação genital feminina. Segundo levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, publicado em março de 2024, a prática atinge cerca de 52% da população feminina nessa faixa etária, o que representa mais de 400 mil vítimas no país.
Os índices de mutilação genital feminina variam entre as regiões de Guiné-Bissau: chegam a 56% em Oio, 87% em Bafatá e 96% em Gabú, o que evidencia a persistência e força cultural da prática em determinados territórios.
Confira o levantamento completo.
“A prática é cercada de mitos e tabus que contribuem para sua perpetuação”, avalia a advogada Mónica José Mendes Nancassa, presidente do Núcleo do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM em Guiné-Bissau. Segundo ela, os elementos que sustentam a manutenção da mutilação em mulheres estão nas crenças enraizadas na cultura guineense.
“Em algumas comunidades, espera-se que apenas as mulheres submetidas ao corte possam cozinhar durante grandes cerimônias ou preparar alimentos para os anciãos e as anciãs. Aquelas que não passaram pelo ritual são, por vezes, vistas como impuras ou inadequadas para participar plenamente da vida social”, conta.
E acrescenta: “Há ainda a ideia de que a mutilação reduziria o desejo sexual feminino, sendo vista como uma forma de controle moral. Esses aspectos culturais e simbólicos, embora baseados em mitos e tabus, acabam funcionando como mecanismos de pressão social que mantêm viva uma prática extremamente prejudicial à saúde física e emocional de meninas e mulheres”.
Prevenir, combater e reprimir
Em 2011, Guiné-Bissau sancionou a Lei nº 14, criada com o objetivo de prevenir, combater e reprimir a mutilação feminina. A norma abrange toda forma de amputação, incisão ou ablação parcial ou total dos órgãos genitais externos femininos por razões socioculturais, religiosas ou higiênicas. Apesar da criminalização da prática e da previsão de sanções severas, incluindo para quem facilita ou deixa de impedir o ato, os desafios para a sua erradicação persistem.
“Os principais obstáculos para a efetiva aplicação da lei nas comunidades estão relacionados a fatores socioculturais e religiosos profundamente enraizados, que ainda sustentam a prática da mutilação genital feminina”, avalia Mónica Nancassa.
Para ela, o enfrentamento à mutilação genital feminina deve priorizar a edução voltada à mudança de comportamento, tanto nacional quanto internacionalmente.
“Isso inclui a implementação de programas educativos em comunidades e escolas, o fortalecimento do engajamento comunitário na desconstrução de mitos e tabus relacionados à prática, além do oferecimento de apoio integral às vítimas”, argumenta.
Refúgio
Recentemente, o Brasil reforçou seu compromisso humanitário ao reconhecer a gravidade da violência imposta por essa tradição e renovar uma medida que acelera o processo de análise de pedidos de refúgio feitos por mulheres e meninas provenientes de nações com alta incidência de mutilação genital.
De forma inédita, o país reconheceu, em abril passado, a condição de refugiadas de 133 meninas e mulheres vítimas da prática. A decisão foi tomada pelo Comitê Nacional para Refugiados – Conare, órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
O grupo se enquadra em um contexto específico da lei brasileira de refúgio por já ter sofrido danos irreversíveis, ou por correr risco real de seus integrantes serem submetidos a graves lesões, por uma razão discriminatória de gênero em seus países de origem.
O reconhecimento da condição de refugiadas foi possível porque o Conare aprovou a manutenção, por mais 24 meses, da nota técnica que orienta sobre adoção do reconhecimento prima facie – que permite proteger, por meio de um procedimento mais rápido, pessoas que sofrem grave violação de direitos humanos. Esse tratamento especial foi aprovado em 2023 e, desde então, 377 pessoas foram beneficiadas.
Futuro incerto
Apesar de iniciativas como essa, estima-se que cerca de 230 milhões de mulheres vivam com as consequências físicas e psicológicas da mutilação genital no cenário global. Caso medidas efetivas não sejam adotadas, mais de 27 milhões de meninas poderão ser submetidas à mutilação até 2030.
Mónica Nancassa defende a adoção de estratégias culturais que promovam o respeito rigoroso às tradições que não causem danos à saúde de meninas e mulheres.
“É fundamental valorizar e proteger as boas práticas culturais relacionadas aos ritos de passagem para a vida adulta e à identidade comunitária”, afirma.
A partir do Núcleo do IBDFAM em Guiné-Bissau, a advogada pretende intensificar ações de sensibilização junto à população e mobilizar atores políticos e líderes religiosos, visando maior engajamento e compromisso com a causa, para que a lei passe a ser plenamente cumprida.
Por Guilherme Gomes
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