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Justiça do Pará reconhece maternidade socioafetiva post mortem

Uma mulher obteve na Justiça do Pará o reconhecimento do vínculo materno-filial estabelecido entre ela e sua tia materna, que morreu em 2020. A 3ª Vara de Família de Belém garantiu a inclusão da maternidade socioafetiva no assento de nascimento, sem exclusão da maternidade biológica, configurando hipótese de multiparentalidade materna.
A autora foi criada pela tia materna desde seu nascimento, em 1979, pois a mãe biológica não tinha condições para assumir plenamente os encargos da maternidade. Desde então, a genitora mantinha um contato limitado com a autora, e a tia, impossibilitada de gerar filhos biológicos, assumiu integralmente a função materna em sua plenitude.
O cerne probatório da ação incluiu documentos de comunicações entre ambas, acervo fotográfico cronológico e depoimentos testemunhais que evidenciaram a tríade caracterizadora da posse do estado de filiação: tractatus (tratamento como filha), fama (reconhecimento social do vínculo) e nominatio (ainda que relativizado pela coincidência do sobrenome familiar).
Irmãos e irmãs da falecida contestaram o pedido, sob o argumento de que a mulher nunca registrou a sobrinha como filha. Sustentaram ainda que a irmã tratava a autora como tratava os outros sobrinhos, e que o pedido possuía motivação exclusivamente patrimonial-sucessória.
Ao decidir, o juiz responsável pelo caso considerou o artigo 1.593 do Código Civil, segundo o qual o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem, além de precedentes do STF sobre multiparentalidade (Tema 622 de repercussão geral) e do STJ sobre paternidade socioafetiva (REsp 1.500.999/RJ), bem como o princípio constitucional da igualdade entre filhos (art. 227, § 6º, CF).
Com base neste entendimento, o magistrado julgou procedente o pedido e declarou a autora como filha socioafetiva e, consequentemente, herdeira da falecida.
Jurisprudência
O caso contou com a atuação do advogado Inaldo Leão Ferreira. Segundo ele, a decisão, embora alinhada à atual tendência jurisprudencial dos Tribunais Superiores, apresenta particularidades juridicamente relevantes que a destacam no cenário judicante nacional.
“Trata-se de reconhecimento de maternidade socioafetiva post mortem, hipótese substancialmente menos frequente na jurisprudência pátria em comparação aos casos de paternidade socioafetiva. A sentença demonstra a aplicação isonômica dos princípios jurídicos independentemente do gênero parental, reafirmando a interpretação teleológica do art. 1.593 do Código Civil”, observa.
Além disso, acrescenta o advogado, a decisão reconhece a multiparentalidade materna, implementando concretamente a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal – STF no RE 898.060/SC (Tema 622): "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".
“Ademais, a decisão reconhece a formação de vínculo socioafetivo parental entre parentes consanguíneos colaterais (tia e sobrinha), evidenciando que o parentesco biológico preexistente não obsta a configuração de nova modalidade parental quando há efetivo exercício da parentalidade no plano fático. Esta interpretação amplia a compreensão do instituto da socioafetividade além das hipóteses tradicionalmente reconhecidas (padrastos/madrastas ou ‘pais de criação’ sem vínculo biológico)”, afirma Inaldo.
Ele pontua ainda que a sentença também consolidou o entendimento de que a filiação socioafetiva demanda dois requisitos essenciais: “a) vontade clara e inequívoca do pretenso genitor socioafetivo; b) configuração da denominada "posse de estado de filho", compreendida como o tratamento dispensado pelos pais (afeto, segurança, dependência econômica) e o reconhecimento social do vínculo”.
“Assim, embora não represente ruptura paradigmática, a decisão refina a aplicação dos institutos jurídicos já estabelecidos, potencializando sua eficácia em configurações familiares ainda pouco exploradas pela jurisprudência”, comenta.
Vínculos afetivos
De acordo com Inaldo Leão Ferreira, a efetivação judicial dos vínculos parentais socioafetivos ainda enfrenta significativos óbices jurídico-processuais e hermenêuticos, como o ônus probatório qualificado, interpretação restritiva dos requisitos legais e a presunção de intuito patrimonial. Ele cita ainda a insuficiência normativa, a operacionalização da multiparentalidade, a natureza jurídica controvertida, a ponderação entre estabilidade jurídica e afetividade e os critérios de aferição temporal.
“Decisões dessa natureza transcendem o caso concreto e exercem função paradigmática na construção do Direito das Famílias contemporâneo, por diversas razões”, explica o advogado.
Segundo o especialista, o julgado materializa a “transição do paradigma institucionalista para o eudemonista no Direito de Família, consagrando a afetividade como princípio jurídico implícito de matriz constitucional, capaz de constituir vínculos familiares juridicamente tutelados”.
Processo: 0825049-81.2021.8.14.0301
Por Débora Anunciação
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