Notícias
Defensoria de Goiás garante o direito "desfiliação" de maternidade biológica e reconhecimento de filiação socioafetiva
.jpg)
Em uma decisão inovadora, uma moradora de Goiás conseguiu remover o nome de sua mãe biológica dos documentos e oficializar a maternidade socioafetiva com a tia materna que a criou. O processo extrajudicial foi realizado por meio de uma sessão de mediação remota, conduzida pela Defensoria Pública do Estado de Goiás.
Todas as envolvidas chegaram a um acordo sobre a descontinuação da maternidade biológica e o reconhecimento da filiação socioafetiva. A decisão foi homologada pela Vara de Família e Sucessões de Valparaíso de Goiás.
O caso contou com atuação da defensora pública Jéssica Santos Ângelo, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM. A defensora pública não localizou casos semelhantes, no que tange à desfiliação materna, em suas pesquisas realizadas para a construção da tese jurídica. “Acredito que tenha sido o primeiro caso de desfiliação materna no qual foi possível resolver de forma consensual e extrajudicial, com a homologação do respectivo termo.”
Como a mãe socioafetiva mora na Espanha, as sessões de mediação foram realizadas por videoconferência. Com o consentimento de todas as partes, a defensora pública ingressou com uma ação para homologação do Termo de Entendimento, buscando o reconhecimento da maternidade socioafetiva e desfiliação biológica.
Sentimento de Injustiça
Raíssa Cristina Serra Costa foi criada pela tia materna, Valderez Serra Costa, que não podia ter filhos biológicos devido a um câncer no ovário diagnosticado aos 20 anos, mas este vínculo nunca foi formalizado.
“A relação com minha mãe é incrível. Minha mãe é meu maior exemplo, a pessoa que mais admiro nesse mundo e temos uma relação de amigas”, comenta Raíssa, em entrevista ao IBDFAM.
Quando ela completou quatro anos, Valderez se mudou para a Espanha e a deixou com a avó, enquanto organizava a documentação necessária para levá-la. Contudo, ao completar cinco anos, Raíssa precisou ser registrada pela genitora biológica para ingressar na escola.
Posteriormente, Valderez obteve a guarda definitiva e levou a menina para a Espanha, onde Raíssa viveu até os 18 anos. “Meu relacionamento com minha mãe biológica era nulo. Sabia quem era ela pois é irmã da minha mãe, porém nunca tive contato telefônico e muito menos pessoal, já que eu morava fora do país”, lembra.
De volta ao Brasil, já adulta, Raíssa sentiu a necessidade de formalizar o vínculo, especialmente após o nascimento do próprio filho, ao perceber a tristeza da mãe por não estar registrada como avó no documento da criança.
“Desde muito pequena sabia que eu não era filha legítima da minha mãe, mas ela sempre destacou que isso não mudava o amor que ela sentia por mim, e sempre deixou muito explícito que ‘sangue’ não diz nada. Mãe é quem cuida, acolhe, dá amor e carinho. Então nunca tive esse problema de não ser ‘filha de barriga’ como em casa se dizia, o importante para mim é que isso nunca fez diferença nenhuma”, conta.
Raíssa e Valderez - Foto: Arquivo Pessoal
Raíssa explica porque buscou a formalização da maternidade: “Me deixava bastante triste carregar o nome de alguém que nem sequer eu sabia quem era. Eu via o tanto de coisas que minha mãe fazia por mim, como ir em uma reunião de pais, ou ver meus campeonatos de Vôlei, e não carregar o nome dessa maravilhosa mulher nos meus documentos era algo muito injusto”.
“Quando meu primeiro filho nasceu, chegou a certidão de nascimento e ver no rosto da minha mãe a cara de tristeza porque o seu nome não constava no papel, aflorou mais aquele sentimento de injustiça. Ver que na certidão dele também carregaria o nome de uma avó que ele também não teria contato nenhum, me fez pesquisar mais sobre o assunto”, acrescenta.
Para ela, a formalização do vínculo é uma vitória. “Depois de 29 anos, poder carregar o nome da pessoa que até hoje faz o possível e impossível por mim, ver ela chorar no momento que mostrei os meus documentos e os documentos dos meus filhos foi uma cena que não tem preço. Agora, sim, é legítimo: sou filha e eles são netos.”
Regulamentação
“Raíssa procurou a DPE-GO para que a sua história pudesse ser reconhecida formalmente, para tanto desejava a exclusão da genitora biológica e a inclusão, no seu assento civil, dos dados de sua tia materna, pessoa que de fato exerceu a figura materna ao longo de sua vida”, lembra a defensora pública Jéssica Santos Ângelo.
Ela explica que todos os envolvidos concordaram com a situação fática consolidada há anos, formalizou-se um “termo de entendimento” entre as partes, a fim de certificar a ausência de qualquer elemento de identidade emocional entre a filha e genitora biológica, e, ao seu torno, a posse de estado de filha e mãe em relação à Raíssa e a genitora socioafetiva.
O Juízo entendeu pela regularidade do ato, ante o preenchimento de todos os requisitos exigidos pela lei, homologando-o nos moldes do artigo 487, inciso III, “b”, do Código de Processo Civil. “Hoje Raíssa conta com seus documentos pessoais refletindo, além dos aspectos formais, a verdade real do seu núcleo familiar.”
Precedentes
A defensora pública explica a diferença entre o reconhecimento da maternidade socioafetiva com desfiliação biológica, como ocorreu no caso de Raíssa, e de um processo de adoção tradicional. “De acordo com a doutrina, mãe e/ou pai afetivo é quem ocupa, na vida do filho, o lugar de mãe/pai, com o desempenho das respectivas funções, de tal sorte que a filiação socioafetiva seria uma espécie de adoção de fato, pois é pai/mãe afetivo quem oferece abrigo, carinho, educação e amor ao filho.”
“A par da diferenciação quanto ao arcabouço legislativo, os institutos da adoção e da filiação socioafetiva ostentam características comuns, já que são formas irrevogáveis de constituir família, gozam da proteção constitucional da igualdade entre os filhos e geram efeitos de ordem familiar e sucessória, como por exemplo o exercício do poder familiar, os deveres de guarda e sustento, os direitos de convivência familiar e de herança”, explica.
Contudo, acrescenta a especialista, a adoção apenas se realiza na esfera judicial, cujo vínculo é declarado por sentença, e pressupõe a existência apenas de um laço familiar, diferentemente da filiação socioafetiva, que tanto pode ser reconhecida judicialmente quanto extrajudicial, e em regra, gera a multiplicidade de vínculos familiares, sem a exclusão dos pais e avós biológicos.
“Nesse sentido, o reconhecimento da maternidade socioafetiva com a desfiliação biológica, como ocorreu no caso da Raissa, acabou por afastar as referidas distinções entre os institutos, porquanto foi possível excluir o vínculo biológico, por ausência de laços afetivos, e simultaneamente reconhecer a filiação socioafetiva, sem a necessidade de perpassar por todo o procedimento especial que envolvem os pedidos de adoção, que encontram-se previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (art. 39 e seguintes) e no Código Civil (art. 1618 e seguintes), porquanto realizado de forma consensual e extrajudicial, em atenção à autodeterminação das pessoas e aos princípios da dignidade da pessoa humana e da busca da felicidade”, detalha.
Reconhecimento
Para Jéssica Santos Ângelo, “trata-se de uma quebra de paradigma, notadamente da ‘cultura da sentença’ para uma ‘cultura da pacificação’, na esteira da Resolução 1//2024 do Condege, que trata da ‘Política Nacional de Tratamento Adequado e Soluções Consensuais de Conflitos da Defensora Pública’, e busca oferecer uma tutela efetiva de direitos aos cidadãos, mediante uma solução adequada, possibilitando a busca do diálogo e a promoção do protagonismo popular”.
“Nessa perspectiva, entende-se que o reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que, portanto, pode ser exercitado sem qualquer restrição, quando o próprio filho clama pelo seu reconhecimento ou, inclusive pelo seu desligamento, sem que lhe seja imposto modelos preconcebidos, na esteira do RE 898.060”, observa.
Segundo a defensora pública, a partir da consolidação do entendimento que deve se preservar o interesse do filho(a), é a vontade deste indivíduo, seja se for pelo reconhecimento de uma das parentalidades em detrimento de outra, como aconteceu com a Raíssa, ou se for pelo duplo vínculo (biológico e socioafetivo), caberá aos operadores do Direito (defensores públicos, advogados, juízes, promotores de justiça, entre outros), acolher a pretensão dos envolvidos, sem perpassar por análises subjetivas sobre o que se entende ser mais adequado em relação ao histórico de vida, social e familiar do outro, em respeito à sua autonomia, e em consideração das vulnerabilidades estruturais presentes na sociedade brasileira.
Raíssa e Valderez - Foto: Arquivo Pessoal
Afeto
A defensora pública Jéssica Santos Ângelo afirma que, após a publicação do caso de Raíssa, outras pessoas procuraram a unidade da DPE-GO para solicitar a desfiliação biológica de genitores/genitoras que, por inúmeras razões, não participaram e não criaram vínculos emocionais com os respectivos filhos.
Ela pondera que a criação do filho do outro sempre foi um fator presente na cultura brasileira, os chamados “filhos de criação”. “Na prática familiarista dos casos que envolvem o tema de filiação, comumente observa-se o interesse dos envolvidos em fazer constar em seus documentos a realidade que vivem.”
“São muitos relatos de pessoas adultas que gostariam de excluir o nome e o registro de ancestralidade biológica de seus documentos, mas acreditam não ser possível, com a máxima de que ‘mãe só tem uma’, ou ainda, que o processo é moroso e/ou dificultoso, quando na verdade, é possível de ser satisfeito, e ainda de forma extrajudicial e dentro de um prazo razoável, quando passamos a olhar o tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana e da busca da felicidade”, conclui a especialista.
Confira a decisão na íntegra no Banco de Jurisprudência do IBDFAM, exclusiva para associados.
Por Débora Anunciação
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br