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Fraternidade socioafetiva post-mortem é reconhecida pela Justiça de São Paulo
A relação de fraternidade socioafetiva post-mortem entre dez pessoas criadas juntas com um homem falecido em 2023 foi reconhecida pela Justiça de São Paulo. De acordo com informações do Tribunal de Justiça do Estado, a convivência começou quando a mãe biológica dos requerentes o acolheu, aos cinco anos de idade, criando-o como filho, embora não tenha ocorrido a adoção formal.
O advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, explica que a fraternidade socioafetiva é “a expressão que designa a possibilidade de reconhecimento jurídico da relação entre irmãos socioafetivos – isto é, irmãos que não possuem, necessariamente, vínculo genético ou ascendentes comuns”.
“Assim como a paternidade, a fraternidade socioafetiva pode estar desvinculada dos laços biológicos, sendo possível que o parentesco entre irmãos seja declarado judicialmente, produzindo efeitos jurídicos”, afirma.
O especialista defende que tal situação consolida a ideia de que a família é uma construção cultural e que, portanto, não está necessariamente atrelada a laços biológicos.
“O caso em questão reafirma o afeto como valor jurídico, sendo a declaração de parentesco socioafetivo colateral relevante não apenas para o Direito das Famílias, mas também para o Direito das Sucessões, pois interfere e pode alterar a ordem e a cadeia sucessória”, acrescenta.
A decisão enfatiza o conjunto de provas e demonstra que o homem era amplamente reconhecido na cidade como integrante da família. Essa condição foi confirmada pela menção dele na certidão de óbito da mãe e pelo fato de ter sido sepultado no jazigo familiar.
“Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, de forma sólida e duradoura, do fazer parte da vida do outro com intenção sincera e profunda, do escolher pertencer. Assim, a posse de estado de irmão nada mais é do que o reconhecimento da existência desse afeto. Pessoas que foram criadas como irmãos devem ser tratadas como irmãos pelo Direito”, diz um trecho da sentença.
Princípio jurídico
Embora já esteja consolidado no ordenamento jurídico brasileiro atual, o princípio da afetividade no contexto fraternal remonta a um caso de 2006, no qual Rodrigo da Cunha Pereira atuou. Nele, a afetividade foi utilizada para mudar a ordem de vocação hereditária no contexto em que três irmãs socioafetivas conseguiram herdar de um homem com quem não tinham laços de sangue, mas uma forte convivência afetiva.
“Elas conviviam há 30 anos com um irmão por vínculos socioafetivos. Ele ingressou com uma Ação Declaratória de Fraternidade/Irmandade Socioafetiva e Reconhecimento de Última Vontade Testamental, buscando o reconhecimento socioafetivo entre ele e elas. Solteiro, sem descendentes, ascendentes ou irmãos biológicos, ao falecer, seus parentes mais próximos, que viviam fora do país, tomaram conhecimento de sua morte muito tempo depois, sem qualquer vínculo de afeto com ele. Contudo, pela regra do Código Civil, esses parentes seriam os herdeiros legais, embora não o conhecessem bem”, conta.
O advogado argumenta que o justo seria destinar a herança às irmãs socioafetivas. “Ele havia iniciado um testamento deixando todos os bens para elas, mas não chegou a concluí-lo. Nesse contexto, cabe aos advogados lutar pelo justo, ainda que em detrimento da aplicação estrita da lei. Esse é o dilema ético: entre o justo e o legal, nem sempre coincidentes, é nosso dever buscar aquilo que é justo”, afirma.
Ele acrescenta que a única solução para que fosse feita justiça foi buscar a declaração de socioafetividade. Essa medida tinha como objetivo garantir que a herança fosse destinada às três mulheres que conviveram com ele por três décadas em uma relação de cuidado recíproco.
“Apenas com essa declaração seria possível alterar a ordem da vocação hereditária. Dessa forma, tornou-se viável atender ao justo e assegurar os direitos das mulheres que compartilharam uma história de vida em comum com o falecido”, conclui.
Afetividade é tema do Podcast IBDFAM
O princípio da afetividade foi o foco do episódio #22 do Podcast IBDFAM, disponível no YouTube e no Spotify. Nele, Rodrigo da Cunha Pereira e o advogado Ricardo Calderón, diretor nacional do IBDFAM, conversam sobre o papel central desse conceito no Direito das Famílias e a evolução dele como princípio jurídico.
No episódio, os especialistas afirmam que a principiologia da afetividade foi fundamental para moldar o Direito das Famílias contemporâneo, e permitiu sua adaptação às realidades sociais. Além disso, eles acreditam que o princípio tem salvado o campo ao garantir a evolução das normas.
Confira o episódio na íntegra.
Por Guilherme Gomes
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