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Privacidade mental? Entenda o debate sobre neurodireitos em meio à coleta e uso de dados cerebrais
Neurotecnologias trazem à tona regulamentação da coleta e utilização de dados cerebrais, com foco na proteção da autonomia e dignidade humana
O romance "Deslumbramento" (2023), do escritor norte-americano Richard Powers, conta a história de um menino de 9 anos que passa a utilizar uma tecnologia capaz de fazê-lo se conectar à mente de sua falecida mãe. A tecnologia utiliza imagens e Inteligência Artificial para acessar as estruturas do cérebro e, assim, registrar a paisagem mental de uma pessoa para que outras possam acessá-la.
O recurso é fictício e de fato ainda não existe uma máquina capaz de entrar na cabeça de uma pessoa para mapear sua personalidade e comportamento. Ainda assim, existem cada vez mais esforços no desenvolvimento de equipamentos que possam entrar em contato diretamente com a cabeça, como no caso da empresa Neuralink, que têm desenvolvido interfaces cérebro-computador prometendo aplicações desde o tratamento de doenças neurológicas até o aumento da produtividade no mercado de trabalho.
Ainda que o avanço da neurotecnologia, com equipamentos em contato direto com a cabeça, ofereça maior precisão. O uso desses dados cerebrais tem aquecido o debate sobre privacidade e manipulação, além de chamar a atenção para os neurodireitos na garantia da proteção da dignidade e da autonomia mental.
Especialista no assunto, a advogada Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão de Família e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, defende que não se deve demonizar a evolução das neurotecnologias, uma vez que elas têm auxiliado, principalmente na área da saúde, tampouco ignorar os desafios jurídicos que crescem junto com elas.
“A leitura das emoções e das intenções, mesmo antes de serem percebidas pela própria pessoa, é um dos principais desafios. Sensores são capazes de identificar padrões cerebrais associados a estados emocionais ou intenções específicas e conseguem antevê-las. Dessa comunicação entre máquina e ser humano advêm os grandes riscos à privacidade, como o vazamento de dados sensíveis e a sua comercialização indevida”, explica.
Os dados cerebrais já estão sendo explorados comercialmente em diversas áreas, como no neuromarketing, em que marcas analisam reações cerebrais para ajustar campanhas publicitárias, e dispositivos de eletroencefalograma, que prometem melhorar concentração e meditação, mas levantam preocupações sobre venda e uso indevido de informações sensíveis.
Em ambientes de trabalho, há relatos de sensores cerebrais que foram usados para monitorar emoções de funcionários, gerando debates sobre privacidade e controle excessivo. Na saúde, implantes cerebrais para tratar doenças como Parkinson e depressão trazem benefícios, mas também o risco de discriminação por seguradoras ou empregadores. Esses casos mostram como a falta de regulamentação pode expor os indivíduos à manipulação e à exploração comercial indevida.
A especialista observa que a exploração desses dados tende a revelar predisposições psicológicas ou comportamentais que podem gerar problemas no âmbito social.
“A utilização das informações cerebrais é o resultado do desenvolvimento da tecnologia aplicada, sobretudo à biomedicina. Portanto, traz inúmeros benefícios à humanidade. A preocupação começa quando elas passam a ser usadas para outros objetivos”, afirma.
Classificação e proteção
Uma das preocupações destacadas pela advogada é a classificação e proteção legal dos dados extraídos do cérebro. Ela questiona se será necessário criar uma nova categoria de dados ou se eles poderão ser classificados como dados biométricos.
“É necessário enfrentar vários desafios neste momento, começando pela conscientização sobre os riscos associados à má utilização ou ao vazamento de informações cerebrais. Isso deve ser seguido pela garantia de consentimento informado e pela implementação de transparência algorítmica, que exige das empresas um esclarecimento de como os dados cerebrais são coletados, processados e utilizados”, pontua.
“Essas preocupações visam proteger o direito à privacidade mental e à autonomia mental, garantindo que os indivíduos não sejam manipulados ou influenciados de forma indevida. Isso inclui salvaguardar os dados cerebrais contra usos abusivos, como exploração comercial ou discriminação, promovendo o respeito à dignidade e à liberdade de escolha de cada pessoa”, acrescenta.
Regulação
No Brasil, ainda não há uma regulamentação específica sobre neurodireitos, mas a questão está no radar do Legislativo, como mostra a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 29/2023, que altera a Constituição Federal para incluir a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica entre os direitos e garantias fundamentais. Atualmente, a proposta está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal e aguarda designação do relator.
No contexto da proteção de dados mentais, a Emenda Constitucional 115/2022 também foi um marco por incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais.
Ainda assim, a falta de regulação específica leva Patrícia Corrêa Sanches a defender que o Direito precisa adotar estratégias para acompanhar a evolução de tais tecnologias. “A regulação pode começar por uma abordagem proativa, antevendo os danos que possam ocorrer e gerando regras específicas para evitá-los ou minimizá-los”, argumenta.
Além disso, ela cita a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, que pode ser aplicada para proteger dados cerebrais. Segundo a advogada, esses dados “podem ser considerados sensíveis diante de suas complexidades e os riscos da utilização indevida”.
Ainda assim, o grande desafio, segundo ela, está nos limites éticos sobre o que deve ou não ser feito com eles. “A prioridade e o limite ético devem ser a dignidade humana e a prevenção de danos psicológicos e sociais. Os dados cerebrais não podem ser usados para segregar pessoas por condição mental ou predisposições. Para isso, o uso precisa estar restrito aos fins médicos e educacionais que sejam benéficos, proibindo a manipulação ou a exploração comercial.”
No âmbito internacional, o Chile tornou-se pioneiro na regulamentação dos neurodireitos ao aprovar, em 2021, uma emenda constitucional que os reconhece como direitos fundamentais. A legislação busca regular a coleta, o armazenamento e o uso de informações cerebrais, além de promover a transparência nas neurotecnologias. A iniciativa chilena é vista como um marco global, inspirando debates em outros países e organizações internacionais.
Além disso, UNESCO incluiu os neurodireitos em suas reflexões sobre inteligência artificial, enfatizando a necessidade de proteger a privacidade mental e prevenir discriminações baseadas em dados cerebrais. Já a ONU, por meio de relatórios sobre tecnologias emergentes, destaca a importância de estabelecer princípios globais que assegurem a dignidade humana e evitem a exploração comercial e política desses dados.
Por Guilherme Gomes
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