Notícias
Especialista avalia impacto do aumento da pena de feminicídio para até 40 anos

O aumento para a pena do crime de feminicídio aguarda sanção presidencial após ser aprovado, na última quinta-feira (12), pela Câmara dos Deputados. A proposta aumenta a pena de 12 a 30 anos de reclusão para 20 a 40 anos e acrescenta agravantes.
Conforme o Projeto de Lei 4266/2023, oriundo do Senado Federal, o crime de feminicídio passa a figurar em um artigo específico, e não mais como um tipo de homicídio qualificado.
Entre os agravantes, estão o assassinato de mãe ou de mulher responsável por pessoa com deficiência e quando o crime envolver: emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio cruel; traição, emboscada, dissimulação ou recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; e emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.
As circunstâncias do crime analisado também serão atribuídas ao coautor ou participante do assassinato.
O texto altera a Lei Maria da Penha (11.340/2006) e aumenta a pena do condenado que, no cumprimento de pena, descumprir medida protetiva contra a vítima – por exemplo, um condenado por lesão vinculada à violência doméstica que progrediu de regime, podendo sair do presídio durante o dia, e se aproximou da vítima. A pena para esse crime de violação da medida protetiva aumenta de detenção de 3 meses a 2 anos para reclusão de 2 a 5 anos e multa.
Mudanças
Há ainda alterações nos direitos e restrições de presos por esses crimes: em casos de ameaças ou prática de novas violências contra a vítima ou seus familiares, durante o cumprimento da pena, ele será transferido para presídio distante do local de residência da vítima.
No caso da progressão de regime, em vez de ter de cumprir 50% da pena no regime fechado para poder mudar para o semiaberto, o período será aumentado para 55% do tempo. Isso valerá se o réu for primário e não poderá haver liberdade condicional.
Além disso, se o apenado usufruir de qualquer saída autorizada do presídio terá de usar tornozeleira eletrônica e não poderá contar com visita íntima ou conjugal.
Já na Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41), para o crime de agressão praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino a pena de prisão simples de 15 dias a 3 meses será aumentada até o triplo.
O crime de ameaça, que pode resultar em detenção de 1 a 6 meses, terá a pena aplicada em dobro se cometido contra a mulher por razões do sexo feminino e a denúncia não dependerá de representação da ofendida. Crimes como de injúria, calúnia e difamação praticados por essas razões terão a pena aplicada em dobro.
A nova lei também deve garantir, em casos de crimes de lesão corporal praticados contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou contra pessoa com quem o réu tenha convivido, que a pena de detenção de 3 meses a 3 anos passe a ser de reclusão de 2 a 5 anos. O mesmo intervalo de pena será atribuído à lesão praticada contra a mulher por razões de sua condição feminina – atualmente a pena é de 1 a 4 anos de reclusão.
Ainda conforme o texto aprovado, a perda do poder familiar passará a atingir o condenado por crimes praticados em razão da condição do sexo feminino, independentemente de a mulher partilhar do mesmo poder familiar.
Função educativa
“O Direito também tem a função educativa”, afirma a professora Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM, ao avaliar a nova legislação. “Creio sim na importância da lei penal, atribuindo pena maior para bens que o legislador considere ter valor relevante, como é o direito de a mulher viver sem violência, sem temer ser violada pelo simples fato de sua condição feminina e do direito indispensável de paz em casa, lugar hoje no Brasil dos mais inseguros para a mulher.”
“Os homens costumam sofrer violência na rua, já as mulheres são agredidas, em sua grande maioria, em decorrência de relações domésticas. Na infância, pais e familiares são os principais agressores. De 18 a 59 anos de idade, geralmente são os parceiros – maridos, namorados, companheiros. Na faixa etária acima de 60 anos, alguns familiares maltratam mulheres debilitadas”, observa a especialista.
O feminicídio, segundo Adélia, é o resultado final de uma violência perpetuada por anos. “Os vínculos de afeto dificultam o afastamento entre vítima e agressor. Imagina ter que colocar o pai do seu filho na cadeia?”
“O homem não se considera criminoso, pois ainda existe, em vários lugares, a cultura do ‘um tapinha não dói’. Muitas vezes a mulher tem a ilusão de que o homem não vai fazer de novo, porque ele se desculpa, porém, logo o ciclo da violência recomeça e segue por anos. Isso sem falar dos ex-parceiros, não conformados com a separação – especialmente quando a mulher começa um novo relacionamento amoroso. Existe também o problema da culpabilização da mulher. Quando é agredida, dizem, é porque fez algo errado. Muitas vezes a mulher não é tratada como sujeito de direitos”, pondera.
Para a diretora nacional do IBDFAM, o agravamento de penas não é suficiente para reduzir ou prevenir a violência de gênero. “Penas duras não têm efeito automático de redução da criminalidade.”
“Há mais de 200 anos, Cesare Beccaria, em obra do século XVIII, ‘Dos Delitos e das Penas’, já afirmava: ‘[...] a certeza da punição, mesmo moderada, é uma forma de prevenção de crimes, muito mais do que a dureza das penas’. Isso permanece válido para os crimes em geral”, reconhece Adélia.
De acordo com ela, o endurecimento penal “não tem sido capaz de afetar especialmente aquele que decide cometer feminicídio, que, muitas vezes, comete logo após o suicídio”.
Insuficiência
Para a especialista, a violência contra as mulheres deve ser encarada como problema de múltiplas dimensões. “Os estereótipos povoam o imaginário social, tendo como consequência a histórica naturalização das condutas de homens e mulheres, que passam a considerar natural o resultado de uma cultura plasmada pacientemente pelo tempo. Assim, reproduzimos estes estereótipos, mitos e reforçamos a cultura de discriminação e violência contra a mulher.”
“Sem dúvida, a compreensão dos mitos é etapa importante do trabalho de compreensão e de intervenção. Negligências, omissões e equívocos, muitas vezes, ocorrem com base nesses mitos”, avalia.
Entre os principais desafios, ela cita a conscientização sobre o uso de preconceitos e estereótipos para legitimar a violência contra a mulher. “Urge sensibilizar todos os agentes públicos, inclusive do Judiciário e do Ministério Público, da Advocacia, da Defensoria Pública e da Segurança Pública de modo a amarrar bem os elos dessa rede, para que as intervenções não sejam apenas pontuais.”
A professora também destaca a importância da responsabilização do autor da agressão, mediante intervenções psicossociais e grupos reflexivos. “Outro desafio refere-se à necessidade urgente de medidas de prevenção à violência contra a mulher, compreendendo múltiplas ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas.”
“Além disso, são necessárias políticas públicas mais consistentes em assistência social e saúde, visando à proteção à vítima e à família. A própria Lei Maria da Penha e leis posteriores indicam várias medidas de prevenção, apontando políticas públicas necessárias, e entre elas ações educativas, tanto dentro das escolas, como também por meio da mídia – poderoso instrumento na formação de valores”, comenta.
Relações humanas
Adélia Moreira Pessoa ressalta que normas jurídicas abrangem várias searas das relações humanas no Brasil, mas é necessária a educação com base nos valores delineados pela Constituição Cidadã de 1988.
Ela também analisa a atuação da mídia ao noticiar casos de feminicídio. “Será que permanece romantizada e desresponsabilizando o autor pelo crime? Abordam as reais motivações para o crime ou ainda apontam como causas o ‘ciúme’, autor ‘fora de si’ ou sob ’‘violenta emoção’, ‘transtornado,’ ‘inconformado com a separação’?”
Segundo a especialista, há milênios, a cultura de sujeição da mulher foi sendo construída e os estereótipos, a dupla moralidade, os preconceitos persistem na realidade social com a legitimação da violência contra a mulher. “Não será de forma rápida que mitos, preconceitos e estereótipos serão desconstruídos.”
A vigência de uma lei pode ajudar, acrescenta Adélia, pois funciona como um dos fatores para o fim da violência. “Mas as leis não bastam.”
A professora entende que mudanças de padrões culturais sexistas, de condutas e atitudes preconceituosas não ocorrem como consequência automática da sociedade democrática, toda a sociedade deve se mobilizar.
“Aprender é mudar comportamentos, atitudes e habilidades. A educação, seja formal ou não, deve ser direcionada à vivência da igualdade, não podendo ser produtora e reprodutora da discriminação e violência de gênero”, observa.
Conscientização
Para Adélia, a efetividade no acolhimento e o suporte integral às mulheres em situação de violência ainda constituem desafios a serem superados, sobretudo nos procedimentos de espera pela resposta jurisdicional. Neste contexto, ela cita os prejuízos ocasionados por uma Justiça fragmentada.
“A partir do momento em que as mulheres se deparam, em muitos locais, com um caminho fragmentado e não interligado junto ao Sistema de Justiça, o acesso à justiça para o exercício desses direitos se torna um grande calvário. Especificamente no Judiciário, quando, muitas vezes, se vê diante da necessidade de ajuizar uma série de procedimentos fragmentados entre as Varas de Família e as de Violência Doméstica, ou mesmo Varas Cíveis e Criminais.”
A situação, segundo ela, torna-se ainda mais desafiadora quando as vítimas vivenciam uma intersecção de múltiplas outras vulnerabilidades, a exemplo das socioeconômicas e estereótipos de cor e raça.
Adélia avalia que a realidade atual contraria as diretrizes de enfrentamento integral e especializado à violência doméstica contra as mulheres, consagradas pela Lei Maria da Penha, pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW.
“O nosso desejo é que as lentes de gênero sejam aplicadas efetivamente em todo o sistema de Justiça, extirpando a fragmentação da jurisdição, possibilitando um eficaz acesso à justiça: ‘Para uma família – um juízo’”, conclui a especialista.
Por Débora Anunciação
Atendimento à imprensa: ascom@ibdfam.org.br