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Cresce número de indivíduos em instituições de acolhimento no Brasil
Verbo transitivo, “institucionalizar” é definido pelo Dicionário da Língua Portuguesa como o ato de “dar um caráter institucional a; tornar institucional”. Para uma parte da população brasileira, mais do que uma palavra no dicionário, essa é a realidade vivida na pele – quase sempre, às margens da sociedade.
Em 2022, o Brasil tinha 160.784 mil pessoas vivendo em asilos, 14.374 em “orfanatos”, 479.191 em penitenciárias e centros de detenção, 24.287 em clínicas psiquiátricas ou comunidades terapêuticas e 7.514 em unidades de internação de menores. Os dados compilados pelo último Censo, e divulgados na última semana pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, apontam o aumento no número de pessoas em situação de institucionalização no Brasil.
Dos mais jovens aos mais velhos, são pessoas com questões diversas, unidas pelo cenário comum de um acolhimento nem sempre tão acolhedor.
“Um dos grandes efeitos negativos da institucionalização é o 'carimbo’ que fica sobre os institucionalizados”, afirma a psicóloga Glicia Brazil, vice-presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM.
“É difícil para o menino que cometeu ato infracional conseguir um emprego; é difícil para uma mãe que foi internada com ideações suicidas resgatar o filho; é difícil para um apenado que cometeu um crime ser inserido em um local de trabalho”, observa.
Na visão da psicóloga, essa dificuldade para a reinserção dessa população parte de uma premissa higienista. “Temos a tendência a colocar à margem aquilo que foge ao perfeito.”
“É uma característica da nossa sociedade colocar à margem determinados grupos sociais que não interessam ao Governo. Eles ficam ‘lá’ neste movimento de ‘higienizar’ a sociedade e não há políticas voltadas para a reinserção desses grupos”, avalia Glicia Brazil.
Segundo ela, este cenário de marginalização é o grande responsável pelo aumento do número de pessoas institucionalizadas no país.
“O grande efeito é uma sociedade baseada em uma premissa falsa, na qual, supostamente, eles estão errados, e nós, que não estamos institucionalizados, somos os bons e os corretos. Essa lógica de maniqueísmo também faz parte dessas políticas públicas, nas quais convém manter essas pessoas institucionalizadas.”
Crianças e adolescentes
De acordo com a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, os números indicados pelo levantamento não condizem com a realidade expressa pelo Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento – SNA, atualizada em tempo real. Conforme o SNA, há, atualmente, mais de 33.500 mil crianças e adolescentes em acolhimento institucional e familiar no Brasil.
A especialista esclarece que o termo utilizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA é “acolhimento familiar ou institucional”, e não “orfanato”. Além disso, “no Brasil não há expressivo número de órfãos e sim de crianças abandonadas, negligenciadas, expostas a maus-tratos entre outras motivações ensejadoras da destituição do poder familiar”.
“Independentemente do número, enquanto tivermos uma única criança em acolhimento, estaremos descumprindo o artigo 227 da Constituição Federal e falhando enquanto Estado, sociedade e família.”
Segundo a psicóloga Glicia Brazil, a falta de uma família para uma criança gera um sentimento de não pertencimento. “O que acontece na infância não fica na infância.”
“É como se ela não tivesse uma raiz, e isso abala essa criança enquanto pessoa em desenvolvimento. Falta estímulo, falta alimento, falta abraço, falta afeto, falta cuidado… A forma como essa criança vai se desenvolver será reflexo dessa carência na base, que é a parte mais importante da vida”, aponta.
O ambiente, segundo Glicia, é mais importante que a genética para a formação de uma criança saudável. “Precisamos estimular essa fase da vida, e a falta de tudo isso gerará sempre prejuízos para o desenvolvimento emocional e cognitivo dessa criança.”
Prioridade absoluta
Silvana do Monte Moreira acredita que “tudo está errado no Brasil, onde não há prioridade absoluta no trato pelo Judiciário com os sujeitos de direitos – crianças e adolescentes”. Segundo a advogada, os prazos estabelecidos pelo ECA (Lei 8.069/1990), pelos provimentos do CNJ e pelos avisos das corregedorias dos Tribunais de Justiça dos estados são absolutamente ignorados.
Além disso, destaca: “Faltam serventuários, técnicos, pessoal vocacionado e, ouso dizer, até boa vontade no trato com crianças e adolescentes e com os que buscam a habilitação e a adoção”.
“Há, inclusive, uma enorme não aceitação dos advogados que atuam na área. Infelizmente esse panorama não é atual, como bem diz nossa vice-presidente Maria Berenice Dias: ‘É um calvário que se arrasta ao longo de vários anos’”, acrescenta.
Infância perdida
Silvana lembra que procedimentos afetos aos sujeitos de direitos – crianças e adolescentes – têm tramitação prioritária, conforme o parágrafo único do artigo 152 do ECA, segundo o qual “[é] assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos e procedimentos previstos nesta Lei, assim como na execução dos atos e diligências judiciais a eles referentes”.
No entendimento da especialista, a perda da infância e do direito à convivência familiar é algo quase que insuperável. “As garantias e direitos fundamentais dirigidos às crianças e adolescentes determinam uma proteção particular e especial, assim, os processos que os afetam devem atentar ao tempo em que se desenvolverá a infância, aqui considerada até os 18 anos incompletos.”
“Roubar, que é o que fazemos com essas mais de 30 mil crianças, o direito a esse afeto e cuidados individualizados, à convivência familiar é um crime que cometemos diariamente, contribuindo para a invisibilidade dessa enorme população de vulneráveis. Subtraímos não apenas a infância, mas, principalmente, o futuro”, conclui.
População idosa
Ainda conforme o levantamento do IBGE, há dois anos, o Brasil também tinha 160.784 pessoas vivendo em asilos ou instituições de longa permanência para idosos. O número representa 0,5% da população com mais de 60 anos no país (32,1 milhões).
Segundo a psicóloga Glicia Brazil, a institucionalização faz com que o idoso se perceba dependente e sem autonomia.
“É muito ruim para a pessoa idosa envelhecer e lidar com limitações motoras, cognitivas, sociais e olhar para o lado e ver seus pares também falecendo e não fazendo parte mais de determinados grupos, aos quais ela pertencia. Isso afeta a autoestima e o emocional, podendo gerar inclusive depressão”, comenta.
Uma forma para mitigar os impactos, sugere Glicia, são os grupos de apoio. “Assim como temos grupos de apoio à adoção, poderíamos ter grupos de apoio à pessoa idosa, com reflexões, rodas de conversa, e espaços dentro das instituições voltados para a reinserção e para a valorização da pessoa idosa.”
O foco, detalha a especialista, deve ser no aspecto positivo. “Muitas vezes o ‘deixar de ter’ faz com que a pessoa idosa se sinta mal e tenha baixa autoestima. Precisamos valorizar a pessoa idosa naquilo que ela tem: a vida, a longevidade e a sabedoria.”
Foto: Pixabay no Pexels
Presidente da Comissão Nacional da Pessoa Idosa do IBDFAM, a advogada Maria Luiza Póvoa Cruz reconhece a importância das instituições para o acolhimento de idosos, especialmente aqueles sem suporte familiar, mas pondera que os dados retratam os desafios no cuidado familiar e na promoção da convivência intergeracional – essencial para o bem-estar dessa população.
A advogada percebe a necessidade de respeitar a decisão (da institucionalização) e considerá-la como opção, desde que todas as partes estejam em harmonia e de acordo como novo caminho.
Entre fatores responsáveis pela institucionalização da pessoa idosa, cita a falta de estrutura familiar, dificuldades financeiras e de saúde e a desestruturação familiar. “Embora no Brasil a cultura tradicional seja de cuidado familiar, há uma crescente pressão social e econômica sobre as famílias, que acabam vendo as instituições como uma solução prática, especialmente em regiões mais urbanizadas.”
Maria Luiza Póvoa Cruz ressalta, porém, que a instituição não retira a responsabilidade dos filhos ou netos. “Pode ser um facilitador e um suporte para a rotina de algumas famílias, e não um local para o abandono dessa pessoa.”
“Os obstáculos para garantir a convivência familiar incluem a falta de apoio público às famílias que cuidam de idosos, como políticas de suporte financeiro, serviços de cuidadores e assistência médica adequada. Além disso, o envelhecimento da população e o aumento das famílias nucleares ou monoparentais sobrecarregam os cuidadores, que, muitas vezes, precisam optar pela institucionalização por não conseguirem conciliar trabalho e cuidado”, pontua.
Para a especialista, esta é uma pauta política, mas também é uma pauta familiar, muitas vezes negligenciada. “Temos que conversar com nossos filhos, com nossos pais sobre o futuro, sobre finanças, cuidados, desejos e sonhos.”
Diferença proporcional
De acordo com o Censo do IBGE, a maior proporção de pessoas vivendo em asilos se encontra no Sudeste (57,5%) – a região concentra 46,6% da população idosa nacional. O Sul responde por 24,8% das pessoas em asilos e tem 16,4% dos idosos do país.
Para Maria Luiza Póvoa Cruz, a diferença na proporção de idosos institucionalizados entre as regiões está diretamente ligada ao nível de envelhecimento da população e à estrutura familiar local, além da realidade socioeconômica.
“O Sul e o Sudeste têm um envelhecimento populacional mais avançado, além de uma maior urbanização, que muitas vezes afasta os familiares dos idosos. Nessas regiões, há também maior acesso a instituições, o que pode influenciar essa escolha como solução de cuidado”, avalia.
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Institucionalizados
Em 2022, 24.287 pessoas viviam em clínicas psiquiátricas ou comunidades terapêuticas, conforme revelado pelos dados complementares do Censo de 2022. A população era majoritariamente masculina e com idade entre 30 e 59 anos.
Em penitenciárias, centros de detenção e estabelecimentos similares viviam 479.191, um total de 0,24% do total da população brasileira (203,1 milhões). A maioria eram homens (96%). A maioria (75,4%) tinha entre 20 e 29 anos (40,7%) e entre 30 e 39 anos (34,7%).
Das 479 mil pessoas encarceradas, 52% estavam na Região Sudeste, 16,5% no Nordeste, 14,7% no Sul, 10% no Centro-Oeste e 6,8% no Norte do país. Naquele ano, o IBGE também registrou 7.514 pessoas vivendo em unidades socioeducativas voltadas para adolescentes em conflito com a lei. Desse total, 96,2% eram homens.
De acordo com a psicóloga Glicia Brazil, a estereotipação é um dos principais impactos psicológicos para pessoas institucionalizadas. “É difícil passar muito tempo em uma clínica ou uma comunidade terapêutica e depois retornar para a vida normal, conseguir trabalho, reatar a vida afetiva e voltar a integrar o antigo grupo de amigos.”
“Ali dentro, de alguma forma, os indivíduos eram bem tratados e pertenciam a uma família. Quando saem, porém, depararam-se com a falta de políticas públicas de reinserção no trabalho e com a falta de auxílio para a educação.”
Neste cenário, observa Glicia, não são raras as ocasiões em que as pessoas querem voltar para a instituição.
No entendimento da especialista, as melhores práticas incluem a inserção da rede familiar na rotina da pessoa institucionalizada, por meio de rodas de conversa e grupos multidisciplinares nos dias de visita. A iniciativa faz parte de um trabalho de orientação “para que a família possa manejar essa situação de forma paralela ao manejo profissional dentro da instituição, visando sempre o retorno deste indivíduo para a casa”.
Por Débora Anunciação
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