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Crise climática: a proteção dos direitos de famílias refugiadas
Ondas de calor extremas, poluição, queimadas, inundações e secas severas, cada vez mais frequentes ao redor do Globo, tornam regiões inabitáveis e fazem com que famílias inteiras fujam para sobreviver. Os efeitos da crise climática, agravada pela exploração desenfreada dos recursos naturais, pelo desmatamento e pelo aumento da emissão de gases de efeito estufa, colocam em xeque a proteção destas famílias.
De acordo com a professora e advogada Patrícia Cristina Vasques de Souza Gorisch, presidente da Comissão de Refugiados do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, a crise climática tem provocado deslocamentos forçados em massa no mundo inteiro, e o cenário é responsável por rupturas significativas nas estruturas familiares.
Ela lembra que a crise climática também pode ocasionar deslocamentos dentro do país. Na Região Nordeste, por exemplo, a seca e o clima semiárido intensificam a questão.
“Em Pernambuco, famílias inteiras foram obrigadas a deixar suas terras e buscar melhores condições de vida em outras regiões do país. Essas migrações geraram desagregação familiar e complicações na sucessão de propriedades rurais, porque muitos migrantes perderam a posse ou mesmo o registro das suas terras”, afirma.
A especialista também menciona os deslocamentos de comunidades ribeirinhas, indígenas e de povos originários na Amazônia, em razão do aumento do nível dos rios; e as enchentes que ocorreram este ano no Rio Grande do Sul.
“A própria intensificação dos desastres naturais, como enchentes, desabamentos, deslizamentos de terra, e essa dispersão das populações ribeirinhas dificultam a aplicação do Direito das Famílias e Sucessões, principalmente nesse contexto em que o registro civil e a própria propriedade são escassos ou mesmo inexistentes. O quanto de memória, o quanto de bens foram dispersos, quantas famílias não foram desagregadas por conta disso”, observa.
Patrícia explica que os deslocamentos afetam diretamente os direitos sucessórios, pois a dispersão familiar e a perda de bens dificulta a identificação de herdeiros e a partilha dos patrimônios. “Em geral, as famílias são separadas pela morte de algum familiar, pelo desaparecimento na travessia ou mesmo pela necessidade de imigração para diferentes regiões ou países.”
“Do ponto de vista legal, o próprio Código Civil prevê os procedimentos para sucessão legítima e testamentária, mas a aplicação desses dispositivos pode ser desafiadora no contexto de famílias deslocadas, que não têm acesso a documentos, bens, informações sobre até o falecimento desses familiares, porque muitas vezes a própria informação é comprometida. A perda de bens imóveis, muitas vezes por conta de áreas afetadas pelos desastres climáticos, complica também a própria liquidação e distribuição desses bens hereditários”, explica.
Refúgio
A presidente da Comissão de Refugiados do IBDFAM percebe diferenças significativas entre os refugiados climáticos e aqueles que fogem por outros motivos. “Os refugiados por opinião política ou por uma situação de perseguição em razão de etnia, de raça, bem característicos de guerra, são geralmente reconhecidos e protegidos por essas convenções internacionais, enquanto os refugiados climáticos ainda não têm esse status legal claramente definido.”
“Muitas vezes, eles não têm acesso aos mesmos direitos e proteções, como o refúgio ou mesmo a reunião familiar ou o reagrupamento familiar. Os refugiados climáticos também enfrentam desafios adicionais, que são relacionados à própria perda de territórios, como ilhas ou regiões costeiras”, explica.
Um exemplo é o caso de famílias que moram em ilhas que desaparecem, bem como de famílias ribeirinhas que perdem suas cidades. “Isso pode resultar na perda completa do próprio país de origem, e acaba criando um vazio legal no que diz respeito à aplicação de leis nacionais, especialmente no campo do Direito das Famílias e Sucessões.”
“Os refugiados climáticos têm particularidades como, por exemplo, a necessidade de redefinição dos conceitos de residência habitual e domicílio, essenciais para determinação de jurisdição em caso de divórcio, guarda e sucessão, etc. Essa dispersão geográfica, além da perda de bens e documentos, cria complexidades adicionais na preservação dos direitos familiares”, pontua.
Patrícia Gorisch entende que as legislações, tanto nacionais quanto internacionais, não estão preparadas para lidar com situações nas quais o local de origem dos indivíduos desapareceu ou se tornou inabitável. “Isso acaba exigindo uma abordagem flexível e a criação de novas normas para garantir a proteção dos direitos dessas famílias.”
Famílias deslocadas
Para Patrícia Gorisch, o Direito das Famílias ainda precisa evoluir para garantir a proteção das famílias refugiadas. “É o ramo do Direito que mais evoluiu nos últimos tempos, muito graças ao próprio IBDFAM, mas ainda precisa incluir mecanismos que protejam os direitos das famílias deslocadas por desastres climáticos.”
Ela sugere: “Isso pode envolver, por exemplo, a adoção de legislações específicas de reconhecimento de direitos de propriedade, de direito sucessório em situações de emergência, ou mesmo deslocamento forçado”.
“A própria integração de princípios de solidariedade e cooperação internacional também é essencial, já que os refugiados climáticos muitas vezes cruzam fronteiras nacionais, por exemplo, algumas pessoas do Rio Grande do Sul cruzaram fronteiras, tanto do Uruguai quanto da Argentina, e isso acaba exigindo uma coordenação desses diferentes sistemas jurídicos”, acrescenta.
Segundo a advogada, a Organização das Nações Unidas – ONU, por meio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, já reconhece a existência dos refugiados climáticos. Ela também cita a convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, embora não inclua refugiados climáticos.
“Isso pode servir como base para a criação de normativas internacionais que possam proteger essas pessoas que são vulneráveis. No Brasil, na legislação interna, a gente também pode seguir exemplos de países que já incorporam o conceito do deslocamento forçado por desastres naturais em suas políticas de migração e refúgio”, propõe.
Obstáculos
Um dos principais desafios enfrentados por famílias deslocadas, segundo a diretora nacional do IBDFAM, é a falta de reconhecimento legal do status de refugiado climático. “O status ‘refugiado climático’ é algo novo, e isso acaba dificultando o acesso a direitos e proteção.”
“A ONU está reconhecendo, mas ainda não existe legislação a respeito. Então, não temos documentos internacionais que reconheçam o refugiado climático enquanto refugiado”, esclarece.
Além disso, ressalta Patrícia Gorisch, as próprias famílias deslocadas frequentemente enfrentam a perda de documentos essenciais. “Certidão de nascimento, casamento, propriedade… Tudo isso acaba criando obstáculos de comprovação desses vínculos familiares e dos próprios direitos sucessórios.”
“Um outro desafio é a própria dificuldade de acesso à Justiça em regiões remotas ou mesmo aquelas afetadas por desastres, onde a infraestrutura jurídica pode ser precária ou mesmo inexistente”, comenta.
Patrícia conclui que a complexidade do reagrupamento familiar e o reconhecimento dessas famílias exigem cooperação e harmonização dos sistemas legais, tanto no Brasil quanto no exterior.
Por Débora Anunciação
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