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“Órfãos” da Hanseníase: filhos afastados dos pais em razão de política sanitária buscam reparação
Como a política sanitária empregada no século XX afastou crianças dos pais e aumentou a institucionalização no Brasil
Uma política sanitária de isolamento vigente no Brasil entre os anos de 1923 a 1986 afastou filhos sadios de pais diagnosticados com hanseníase e internados compulsoriamente em preventórios. O Decreto 16.300/1923 estabeleceu, naquele período, medidas especiais para o tratamento da hanseníase, como o afastamento dos doentes e a vigilância dos que conviviam com os pacientes.
O texto, já naquela época, feria a, então vigente, Constituição dos Estados Unidos do Brasil (18 de setembro de 1946). É o que explica a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
A especialista cita os artigos 163 e 164 da norma: “A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado" (art. 163); “É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa” (art. 164).
“A separação da criança de sua mãe, a priori, apta ao exercício do poder familiar, era algo absolutamente anacrônico, injusto e, a meu ver, contra legem. Assim, o normativo, à época, já seria um tremendo violador de direitos da maternidade e da criança e do adolescente”, avalia Silvana.
Institucionalização
Segundo Silvana do Monte Moreira, é inconstitucional pensar em afastamento familiar por questões de saúde na atualidade. “Crianças apenas serão acolhidas se estiverem em situação de vulnerabilidade.”
”Hoje, estamos sob a égide da Constituição Cidadã de 1988, com a consagração do princípio do superior interesse da criança, da prioridade absoluta, além do direito à convivência familiar. O cuidado tem valor jurídico e, digamos, por exemplo, que a mãe ou pai, hipossuficiente, contraia uma doença extremamente contagiosa, a criança pode ficar, eventualmente, acolhida até a recuperação desse pai ou mãe, sendo-lhe propiciada a convivência, mesmo que virtual”, esclarece.
Sancionada no ano passado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 14.736/2023 reconhece o direito à pensão aos filhos que foram separados dos pais como consequência dessa política pública. O texto também atualizou o valor da pensão especial concedida aos pacientes que passaram por internação ou isolamento social obrigatórios até 31 de dezembro de 1986.
A questão já havia sido regulamentada por alguns estados brasileiros. Em 2018, por exemplo, Minas Gerais editou o Decreto 47.560/2018 para regulamentar a Lei 23.137/2018, que dispõe sobre o pagamento de indenização aos filhos segregados de pais com hanseníase submetidos à política de isolamento compulsório no Estado.
Estudos
A presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM conta que os impactos do acolhimento no desenvolvimento de crianças e adolescentes já foram avaliados e comprovados por diferentes pesquisas científicas, como o levantamento “Órfãos da Romênia”. O estudo foi feito pela Universidade de Harvard, no início dos anos 2000, no contexto do regime comunista de Nicolae Ceausescu no país europeu.
Naquele período, o ditador proibiu o aborto, o uso de contraceptivos e cobrava altos impostos das famílias que não tivessem filhos ou dos que tivessem poucos. Por duas décadas, os pesquisadores mapearam os efeitos da institucionalização precoce no desenvolvimento do cérebro de crianças.
O resultado da política foi um aumento da taxa de natalidade, que em decorrência da miséria vivida pela população, levou milhares de crianças aos abrigos do Estado. Quando Ceausescu foi executado pelo exército, em 1989, havia mais de 170 mil órfãos vivendo em 700 instituições superlotadas e precárias.
Filho afastado dos pais deve ser indenizado
Em decisão recente, a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região – TRF-3 obrigou a União a indenizar um homem que foi separado dos pais logo após o nascimento em razão da política sanitária contra a hanseníase. O colegiado considerou que houve ofensa aos direitos de personalidade e fixou o valor em R$ 200 mil pela União.
Consta no processo que, em 1961, a mãe do autor foi internada de forma compulsória em um asilo-colônia no Estado de São Paulo após o diagnóstico de hanseníase, motivo pelo qual o recém-nascido foi retirado da família. O bebê foi levado para um educandário na capital paulista e, aos quatro anos de idade, transferido para outro em Carapicuíba, onde viveu até completar 18 anos.
Em 2022, o homem acionou o Judiciário e pediu R$ 500 mil de indenização por danos morais. Afirmou, na ação, que sofreu, entre outras coisas, com a ansiedade e castigos físicos. O processo, porém, foi julgado extinto pela 1ª Vara Federal de Mogi das Cruzes, sob justificativa de prescrição.
Ao avaliar o recurso no TRF-3, o colegiado concluiu que o pedido é imprescritível, em razão da atipicidade dos fatos. “A prescrição quinquenal atinge situações de normalidade e não àquelas que correspondem a violações de direitos e garantias fundamentais, protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Carta Magna.”
Conforme a decisão: “Não há como negar o trauma e a ‘marca’ que tais crianças e adolescentes carregavam, pois, mesmo que saudáveis, eram acompanhados rigorosamente pelos agentes responsáveis. Já aqueles que eram isolados em instituições, o estigma carregado era ainda mais presente, visto que nem ao menos era possível o convívio com outras crianças, que não apresentavam o mesmo histórico familiar”.
Ainda segundo o colegiado, com o advento da Lei 11.520/2007, a própria União Federal assumiu sua responsabilidade e reconheceu o direito à concessão de pensão especial para as pessoas que foram submetidas à mencionada política sanitária segregacionista.
“Entretanto, o diploma legal não esgota todas as alternativas de reparação, e nem ampara os familiares das pessoas isoladas, que, especialmente no caso dos filhos, igualmente sofreram as mazelas da segregação, ainda que na condição de internos em educandários. Assim, se o próprio Estado reconhece o direito de pensionamento às pessoas atingidas pela doença, de rigor assegurar, aos filhos, o pagamento de indenizações por dano moral.”, registrou o acórdão.
Dados
O juiz Fernando Moreira, membro do IBDFAM, afirma que a jurisprudência tem caminhado no mesmo sentido da decisão do TRF-3 para garantir o direito à indenização às crianças afastadas de seus pais em decorrência das políticas sanitárias, durante o Regime Militar. Ele destaca julgados do próprio TRF da 3ª Região, datados de 2019 (ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL – 5002761-40.2018.4.03.6119) e de 2020 (ApCiv 5002447-91.2019.4.03.6141).
“Entre outros aspectos muito positivos deste julgado, posso citar o acolhimento da tese de imprescritibilidade das ações referentes à reparação de danos decorrentes de violações aos direitos fundamentais, ocorridos durante o Regime Militar, fazendo o Tribunal um controle de constitucionalidade (observância à Constituição Federal) e de convencionalidade (observância às convenções e aos tratados internacionais)”, avalia o juiz.
O magistrado ainda aplaude a decisão por “reconhecer a violação aos direitos fundamentais da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária, ao privá-las de sua liberdade em instituições públicas ou, em caso de não acolhimento, mediante forte vigilância durante o período escolar, mesmo sem qualquer diagnóstico de hanseníase”.
“Essa triste experiência da nossa história traz lições para o presente. Sempre devemos nos perguntar se a conduta institucional praticada em suposto benefício da criança e do adolescente viola seus direitos fundamentais. No passado, como vimos, em nome da suposta proteção à saúde pública, foram violados os direitos fundamentais dessas crianças à convivência familiar e comunitária”, observa.
Já no presente, acrescenta o especialista, “em nome da proteção do seu bem-estar, milhares de crianças e de adolescentes ainda crescem em acolhimentos institucionais em nosso país, também privados de suas famílias e de sua vida comunitária”.
“O erro se repete. As indenizações, por certo, também se repetirão. Contudo, nunca serão suficientes para reparar os desastrosos danos causados”, conclui Fernando Moreira.
Hanseníase
De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil ocupa a 2ª posição do mundo entre os países que registram casos novos de hanseníase. A doença afeta os nervos e a pele e pode acometer pessoas de ambos os sexos e de qualquer idade.
As lesões neurais decorrentes conferem à doença um alto poder de gerar deficiências físicas e configuram-se como principal responsável pelo estigma e discriminação às pessoas acometidas pela doença.
Em 1995, o Brasil determinou a remoção do termo “lepra” e derivados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administração centralizada e descentralizada da União e dos estados (Lei 9.010/1995). A medida pretendia diminuir a estigmatização acerca dos pacientes.
Atualmente, o tratamento e acompanhamento é disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde – SUS. Saiba mais.
No Senado, tramitam propostas que garantem mais direitos às pessoas com a doença: um dos projetos incentiva a produção de medicamentos para doenças negligenciadas (PL 4212/2019); enquanto outro isenta do desconto do Imposto de Renda na fonte aposentadorias ou pensões de brasileiros que tenham doenças profissionais ou graves (PL 1253/ 2019). Em 2022, a Lei 14.289/2022, sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro, garantiu aos pacientes com hanseníase a preservação do sigilo sobre sua condição.
Por Débora Anunciação
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