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Estelionato sentimental: decisões recentes reafirmam proteção às mulheres
Vítimas de estelionato sentimental em diversos estados brasileiros têm conquistado na Justiça o direito à indenização por danos morais. Decisões recentes no Amazonas e em Minas Gerais seguem a tendência e reafirmam a importância de compensar danos emocionais e financeiros causados por esse tipo de crime, estabelecendo precedentes importantes para futuros casos.
Atualmente, o estelionato sentimental é entendido como uma modalidade do crime de estelionato tipificado no artigo 171 do Código Penal. Em 2022, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que altera o CP para tipificar a conduta.
O PL 6444/2019, ainda sem atualizações no Congresso Nacional, define o estelionato sentimental como o ato de induzir a vítima a entregar bens ou valores para si ou para outra pessoa mediante a promessa de constituir uma relação afetiva.
No Amazonas
Conforme a decisão do 6º Juizado Especializado no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Manaus, no Amazonas, uma mulher vítima de estelionato sentimental deve receber R$ 10 mil por danos morais e R$ 17.155 mil referentes aos danos materiais. Além da indenização, o homem que praticou o crime foi condenado a mais de quatro anos de prisão.
Nos autos, a autora alegou que manteve um relacionamento com o réu por um ano e seis meses. A relação terminou, pois o homem pedia dinheiro constantemente, sob diversas justificativas, como doença, alimentação, aluguel e dívidas com agiotas.
Segundo a vítima, o réu era bastante persuasivo e a importunava a vender bens e repassar valores, o que ela fez em alguns casos, tanto em espécie quanto por transferências bancárias.
Em janeiro do ano passado, porém, ela teria descoberto diversas transferências bancárias feitas em sua conta pelo réu. Ao investigar, descobriu que o homem não era engenheiro, não vivia em Manaus, era casado e tinha uma filha de 12 anos.
Conforme consta nos autos, o réu reconheceu, em audiência, o recebimento parcial das transferências realizadas. Defendeu, porém, que os valores recebidos eram referentes a pagamentos por serviços prestados como motorista de Uber e outros trabalhos na casa da vítima.
De acordo com a juíza responsável pelo caso, o réu praticou estelionato no contexto de uma relação afetiva contra uma mulher, conforme a Lei Maria da Penha (11.340/2006). "O réu abusou da confiança e afeição da parceira para obter vantagens patrimoniais, caracterizando o chamado estelionato sentimental."
A magistrada também citou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Segundo ela, nos casos de violência doméstica contra a mulher, a palavra da vítima é de grande valor probatório. Por ser réu primário e ter respondido ao processo em liberdade, foi concedido a ele o direito de recorrer da sentença em liberdade. O número do processo não foi divulgado.
Relações afetivas
Diretora Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, Fernanda Las Casas entende que a decisão foi acertada. “Pela primeira vez, vejo que se inicia com esta decisão um movimento forte o suficiente no sentido de afugentar outros estelionatários, na prática cada vez mais comum destes atos perversos.”
“A decisão vem respaldada no Protocolo de Gênero, e soa como um retumbante: ‘não vamos mais tolerar a má-fé nas relações afetivas’ – fato importante, pois, com isso, temos pela primeira vez a possibilidade de proteger as mulheres nestes casos, de forma preventiva”, analisa a especialista.
Segundo Fernanda Las Casas, a sentença contribui para que outras vítimas busquem auxílio no Juizado Criminal. “A observação que se faz é que as indenizações cíveis são baixas, e incapazes de assustar e afugentar os próximos estelionatários.”
Boa-fé objetiva
“Para começar a explicar o princípio da boa-fé, vale lembrar os ensinamentos de Antônio Menezes Cordeiro que ensinava a origem da expressão boa-fé advinda da expressão fides, que significa 'fé', 'confiança', em sentido religioso e 'lealdade à palavra dada' em sentido jurídico”, lembra a advogada.
Fernanda explica que, em uma relação jurídica negocial, o princípio da boa-fé é considerado um dever, cuja finalidade é garantir, do início ao fim, que aquela relação contratual seja feita em parâmetros honestos e éticos de forma a transmitir integralmente todas as informações importantes, as quais contribuam para a formação e manutenção do consentimento livre das partes, a fim de realizarem o negócio jurídico.
“Do mesmo modo, a boa-fé nas relações afetivas é esperada, visto que nas relações interpessoais é esperado que as partes contribuam para o desenvolvimento e manutenção do relacionamento com informações essenciais sobre si, sua vida e sua forma de agir, de forma honesta, ética, para que ambas as partes optem em permanecer ou não no relacionamento afetivo, sempre imbuídas, na verdade do outro, na conduta de lealdade que deve existir entre as partes”, esclarece.
A especialista acrescenta que o Protocolo de Gênero assegura resultados mais satisfatórios para as vítimas, tendo em vista que, nos casos de estelionato afetivo, a relação entre a vítima e o réu é ambientada em um contexto patriarcal e machista. “No caso da decisão, foi reconhecida a quebra da confiança, a qual gerou o dever de indenizar, pois a vítima agia munida pela presunção de boa-fé objetiva natural e esperada em todas as relações, e desconhecia a real intenção do réu em obter vantagem financeira naquele relacionamento afetivo, não imaginava que seu parceiro pudesse lhe gerar prejuízos no que tange ao patrimônio, deixando evidente a quebra de confiança e lealdade.”
“Em 2023, já constatamos a confirmação da defesa da ‘boa-fé em relacionamentos afetivos’ sendo esta compreendida também em casos de estelionato sentimental com naturalidade. Sendo apenas necessário a apresentação dos quatro elementos essenciais para gerar o dever de indenizar: ato ilícito, dano, nexo de causalidade entre o ato e o dano e comprovação da culpa ou dolo do agente”, frisa.
Presidente da Comissão Nacional de Pesquisas do IBDFAM, Fernanda conclui que a sentença do Amazonas abre portas para “desencorajar os estelionatários na prática do delito e, assim, valorizar de fato a boa-fé nas relações afetivas, por meio da punição com restrição de liberdade". Ela ressalta, porém, que ainda é necessário buscar indenizações por danos morais “verdadeiramente justas, as quais no mínimo pagarão a terapia completa das vítimas destes crimes”.
Em Minas Gerais
Em abril deste ano, a Justiça de Minas Gerais também garantiu indenização a uma vítima de estelionato sentimental. Na ocasião, a 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG fixou a indenização pelo crime em R$ 3 mil, além de R$ 2.520 por danos materiais. Relembre o caso.
Eduardo Tomasevicius Filho, membro do IBDFAM e professor de Direito de Família e Sucessões da Faculdade de Direito da USP, reforça que um dos pressupostos da boa-fé objetiva é a coerência de comportamento.
Autor do livro "O princípio da boa-fé no Direito Civil", Eduardo explica que a violação da boa-fé ocorreu, no caso, pois houve quebra de expectativa da convivência, por meio do comportamento contraditório do outro. “A boa-fé exige que todas as pessoas tenham uma conduta correta.”
O especialista ressalta que, no Brasil, a questão não está positivada como princípio geral de Direito, ao contrário de outros ordenamentos, como o espanhol ou o argentino. Lembra, porém, que a jurisprudência tem evoluído neste sentido.
Segundo Eduardo, o tema ainda está em desenvolvimento, portanto deve levar tempo para serem estabelecidos parâmetros de aplicação. “Por enquanto, a gente percebe que há um reconhecimento desta figura quando o dolo é mais que evidente”, conclui.
Por Débora Anunciação
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