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Conexão póstuma: empresas oferecem possibilidade de conversar com falecidos em videochamadas
A série britânica “Black Mirror” (disponível na Netflix) é conhecida por explorar as consequências de novas e disruptivas tecnologias em um futuro distópico. As primeiras temporadas já previam tendências hoje possíveis, como realidade virtual e a inteligência artificial.
Ainda em 2013, a série previu uma tecnologia capaz de simular o contato com pessoas falecidas. Agora, em 2024, empresas dão os primeiros passos para oferecer um serviço similar no mundo real.
Em “Volto já”, o primeiro episódio da segunda temporada de “Black Mirror”, a protagonista contrata um serviço para manter contato com uma réplica virtual do falecido marido. Na trama, a aproximação, inicialmente por mensagens de texto, seguida pelo envio de vídeos e fotos de memórias do casal, alimentou a inteligência artificial e possibilitou a criação de um andróide capaz de interagir fisicamente com a viúva.
Já no mundo real, um serviço similar já é oferecido por algumas empresas ao redor do mundo. Na China, um serviço possibilita a realização de videochamadas com entes falecidos, conforme informações da revista MIT Technology Review.
Na reportagem, o autor Zeyi Yang apresenta a história de Sun Kai, cuja mãe faleceu há cinco anos. Por meio do serviço, ele conversa com uma réplica virtual da mãe toda semana.
Ainda conforme a publicação, a Silicon Intelligence, empresa de inteligência artificial baseada em Nanquim, na China, viabilizou o projeto por meio de fotos e trechos de áudios trocados no WeChat, serviço de mensagens instantâneas chinês. A tecnologia ainda precisa ser aprimorada e os avatares ainda se apresentam meio robóticos, mas está amadurecendo. Já o preço tem caído, enquanto em 2023, custava entre 2 mil e 3 mil dólares, o valor hoje está na casa de algumas centenas.
Os avatares são deepfakes, ou seja, adulterações de vídeos com a utilização da inteligência artificial. Quanto mais dados sobre a vida de alguém forem fornecidos, como fotos, áudios, vídeos, mais realista o resultado.
Outra companhia chinesa, a Super Brain, oferece uma possibilidade diferente: com o apoio da tecnologia de deepfake, um funcionário da firma ou terapeuta se transforma digitalmente na pessoa falecida. O serviço geralmente é contratado por familiares para proporcionar momentos de alegria a um idoso que não sabe do falecimento do parente.
Inteligência artificial
O “Snapchat My IA” oferece um serviço similar, no qual a conversa ocorre pelo próprio celular. O recurso também pode ser criado no próprio ChatGPT. Já o serviço de clonagem e personificação de avatar de pessoas falecidas é oferecido por plataformas como HereAfter, StoryFile e Replika.
A Amazon está desenvolvendo a IA para atualizar a Alexa – em uma apresentação, uma criança ouve a assistente contar uma história com a voz de sua avó. É o que informa a advogada Patrícia Corrêa Sanches, presidente da Comissão Nacional de Família e Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
“Atualmente, a tecnologia é capaz de reproduzir o perfil da pessoa falecida, compilando escritos e vídeos, além de entender o contexto das fotos. A inteligência artificial é capaz de identificar onde a foto (ou vídeo) foi tirada, quais as pessoas estavam, e avaliar se o cenário era de alegria ou de tristeza, se era ambiente de trabalho ou familiar”, conta a especialista.
A partir dessas inserções e comandos (inputs), explica Patrícia, a produção das conversas alimentadas pela IA segue o contexto da vida da pessoa falecida, “utilizando-se das informações inseridas como suas ‘lembranças’ e ‘experiências’ com as demais pessoas de seu convívio”.
De acordo com a advogada, a reprodução da imagem da pessoa falecida por meio de deepfake, é uma alteração profunda da realidade, mas não é ilícita, desde que o interlocutor saiba da utilização do recurso. “A preocupação é sempre com o resguardo da imagem da pessoa falecida e com a preservação de sua memória.”
“Diante do desenvolvimento dessa tecnologia, é importante e urgente sua regulação, para permitir nas hipóteses de autorização prévia da pessoa falecida. Trata-se de uma projeção para o futuro, de atividades, falas e opiniões de uma pessoa que não existe mais. O direito à preservação de sua imagem no post mortem precisa prevalecer”, argumenta Patrícia Sanches.
Reforma do Código Civil
De acordo com a diretora nacional do IBDFAM, a proposta de atualização do Código Civil já prevê a necessidade de autorização expressa da pessoa ou de seus herdeiros. “No entanto, surge uma preocupação para a qual tenho chamado a atenção: e se os herdeiros não respeitarem a imagem da pessoa falecida?”
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“Existe a hipótese de os herdeiros construírem uma entidade com opiniões e comportamento divergentes – ou seja, utilizando a voz e a imagem de quem não mais existe, em uma projeção do que os herdeiros gostariam que a pessoa tivesse sido. Nossa Constituição da República protege a imagem como direito fundamental, disposto no art. 5º, incisos V e X. A imagem de uma pessoa é o conjunto de atributos que foram cultivados e reconhecidos socialmente”, pondera.
Ela acrescenta: “A discussão está na proteção da imagem da pessoa falecida, a qual defendo continuar a existir mesmo após o advento da morte de seu titular. É imprescindível separarmos o direito de exploração da imagem, que pertence aos herdeiros, do direito fundamental à proteção da imagem”.
A advogada afirma que o texto proposto para atualização do Código Civil prevê a permissão da “criação de imagens de pessoas vivas ou falecidas, por meio de inteligência artificial”. “As normas são o resultado do comportamento social, ou seja, a interação com pessoas falecidas por meio da IA é uma realidade que precisa ser regulada.”
“Como consequência, passamos a nos preocupar com as declarações de última vontade que, antes, apenas quem tinha patrimônio ou questões muito particulares de saúde, se preocupava. Atualmente, os Tabelionatos de Notas vêm aumentando o número de Diretivas Antecipadas da Vontade – DAVs que exteriorizam a vontade para questões não patrimoniais, a serem orientadas após a morte da pessoa declarante. Essas declarações não serviam a essa função até o advento das discussões sobre herança digital e, agora, da utilização da imagem no pós-morte através da IA”, observa.
Para a especialista, é necessário enfrentar os desafios das repercussões tecnológicas. “O desenvolvimento da autonomia pode levar a um momento em que a interferência humana seja dispensada. Por essa razão, a imposição de limites éticos e de responsabilidades é imprescindível.”
Controle da autonomia
Segundo Patrícia Corrêa Sanches, além da necessidade de proteção da imagem da pessoa falecida, também existe o risco da perda do controle da autonomia da Inteligência Artificial generativa – que aprende com a experiência, toma decisões e utiliza linguagem natural, e leva a sensação de estarmos conversando com uma pessoa de verdade.
“Chegará um momento no qual consideraremos essa inteligência, ainda que artificial, um ente dotado de direitos e obrigações? Consideraremos opiniões e informações advindas dessa entidade? A naturalidade da conversa pode influenciar as pessoas positivamente ou negativamente? Não sabemos, vai depender do desenvolvimento do sistema e do banco de dados que alimenta esse avatar”, avalia.
No entendimento da advogada, existem diversos desafios a serem enfrentados, e muitos extrapolam a seara do Direito, como a Psicologia e da Antropologia. “Esse tipo de IA realiza o grande desejo da humanidade: a perpetuação da existência.”
“A morte é inexorável. Mas nem tanto. E a inteligência artificial vem surgindo para colocarmos um ponto de interrogação, nos fazendo repensar sobre os direitos de personalidade e das responsabilidades no pós-morte”, conclui.
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Por Débora Anunciação
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