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Mês da Adoção: resolução do CNJ criada para aprimorar entrega voluntária de recém-nascidos completa 1 ano
Normativo nasceu para garantir regras previstas no ECA e no Marco Legal da Primeira Infância, segundo Richard Pae Kim, ex-conselheiro do CNJ e ex-coordenador do FONINJ
Muito embora a entrega voluntária de recém-nascidos à adoção seja um direito garantido a todas as mulheres e crianças desde 1990, quando foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a criação de diretrizes para atendimento adequado de gestantes e parturientes com esse interesse foi feita somente em 2017, com a Lei 13.509. Ainda assim, em 2023, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ reconheceu a necessidade de aprimorar a prática por meio da Resolução 485/2023. Um ano após o normativo entrar em vigor, o juiz Richard Pae Kim, ex-conselheiro do CNJ e ex-coordenador do Fórum da Infância e da Juventude – FONINJ do CNJ, avalia a importância da diretriz.
Segundo ele, a Resolução “nasceu com o objetivo de garantir que o ECA e o Marco Legal da Primeira Infância fossem integralmente respeitados, além de criar um fluxo de atendimento, por uma rede de proteção e pelo Sistema de Justiça, para que o encaminhamento da mulher que não deseja maternar seja realizado sem constrangimento, evitando situações extremas como o abandono da criança com risco de morte, abortos clandestinos e até mesmo entregas ilegais para adoção”.
“A Resolução possibilitou a definição de um procedimento pormenorizado de entrega protegida, garantindo agilidade e acolhimento a todos os envolvidos e estabelecendo um norte para o Poder Judiciário no que diz respeito à política de proteção à mulher e à criança, fortalecendo a cultura da adoção legal em nosso país”, afirma ele.
Antes da criação da resolução do CNJ, muitos Tribunais de Justiça já possuíam projetos que orientavam os magistrados a lidar com a prática em estados como Paraíba, Amazonas, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.
“Apesar disso, verificamos que havia a necessidade de se estabelecer um fluxo nacional para garantir a unicidade de atuação do Judiciário. Isso passou a ser garantido com a Resolução 485 e o Manual sobre a Entrega Voluntária do CNJ”, explica.
Objetivo é humanizar a entrega do recém-nascido
O normativo reforçou procedimentos adotados no Judiciário, padronizou etapas do processo em todo o Brasil e trouxe novidades, como a capacitação dos agentes públicos para garantia de uma entrega humanizada. Um dos destaques da resolução trata do encaminhamento das mães à Vara da Infância e Juventude antes ou logo após o nascimento para formalização do processo judicial de adoção, sem constrangimento e com atendimento de equipe interprofissional.
A Resolução também garante que a genitora passará por avaliação clínica, psicológica e assistencial, de modo que sejam observados os aspectos envolvidos na decisão de entrega do recém-nascido e que a mãe esteja ciente de seus direitos. A medida reforça a garantia do sigilo de todo procedimento, seja em relação ao pai e familiares ou à própria família da mãe, ressalvado o direito da criança ao conhecimento da origem biológica. A parturiente também goza de licença-saúde, cuja razão é mantida em caráter sigiloso.
“A Resolução garante ampla defesa jurídica à gestante ou mãe. É direito da gestante ou parturiente a entrevista prévia com o defensor público ou advogado dativo em ambiente no qual tenha privacidade, a fim de que receba todas as orientações jurídicas necessárias. Além disso, a mulher tem o direito de ser acompanhada por defensores públicos durante a audiência designada para sua oitiva e manifestação do desejo de entrega do bebê para adoção, cabendo ao magistrado zelar para que receba orientação jurídica qualificada. Também há de se garantir a participação do Ministério Público”, aponta.
Richard Pae Kim destaca que a ideia é que um tratamento humanizado, empático e informativo, que respeite as particularidades de cada caso, deve ser garantido durante todo o processo.
“No comparecimento à Vara da Infância e Juventude, a gestante ou parturiente deve ser acolhida em local reservado, para garantia da confidencialidade da entrevista. Não pode ser questionada sobre os motivos de seu ato, tampouco prejulgada. Não pode haver tentativa de convencimento para sua retratação ou desistência. A gestante ou a parturiente deverá ser acolhida pela equipe interprofissional do Poder Judiciário com empatia e delicadeza”, diz.
Nessa etapa, são colhidas informações como identificação, endereço, contatos e data provável do parto, além da assinatura. A partir daí, ela é orientada sobre a entrega voluntária, conforme a Resolução 485 e de acordo com o ECA. Desde o primeiro atendimento, a gestante ou parturiente é informada sobre o direito ao sigilo, inclusive quanto ao nascimento da criança e comunicação aos membros da família extensa. No entanto, ela é orientada sobre o direito da criança ao conhecimento da origem biológica, que é personalíssimo, intransferível e de proteção constitucional, também garantido pelo ECA.
Processo é prioritário e tramita em segredo de justiça
“É de responsabilidade do magistrado a fiscalização para que não haja qualquer forma de constrangimento pela equipe interprofissional e a garantia de que o procedimento tramite com prioridade e em segredo de justiça. Aliás, ressalto que, para assegurar o cumprimento dessa norma, o ECA previu uma infração administrativa que fixa multa ao médico, enfermeiro ou dirigente do estabelecimento de saúde que não comunicar a existência de mãe ou gestante interessada em entregar seu filho para adoção. Desse modo, no momento do comparecimento da mulher, a equipe interprofissional deve avaliar se, no caso concreto, houve infração, para que conste no relatório, a fim de que sejam tomadas as providências judiciais cabíveis contra os infratores”, pontua.
O atendimento interprofissional continua até a audiência de entrega da criança, salvo no caso de retratação ou arrependimento. Vale lembrar que, caso se trate de entrega motivada por falta de recursos materiais, a mulher é informada sobre o direito de requerer alimentos gravídicos, pleitear o reconhecimento da paternidade e ser informada sobre os benefícios sociais existentes em sua região. A família extensa e o suposto genitor poderão ser entrevistados pela equipe interprofissional caso houver solicitação pela gestante ou parturiente que não pediu sigilo.
“Entregue o relatório da equipe interprofissional, a autoridade judiciária competente poderá encaminhar a gestante ou mãe, desde que haja concordância, à rede pública de saúde para o pré-natal, avaliação nutricional, assistência psicológica, tratamento de dependência química, ligadura de trompas, planejamento familiar e assistência social ou outro atendimento especializado que se faça necessário. Na falta de moradia da gestante ou mãe, deverá ser encaminhada para acolhimento em abrigo público e incluída em programas habitacionais”, afirma.
Caso a equipe interprofissional tenha dúvida sobre a saúde mental da mulher, ela é encaminhada para avaliação psiquiátrica antes da conclusão do relatório para garantia de sua manifestação de vontade. A equipe interprofissional da Vara de Infância e da Juventude deve sempre articular com o serviço de saúde o tratamento adequado que será dado à parturiente, no sentido de que seja respeitado o desejo da mulher no que se refere ao contato com o bebê e a amamentação.
Entrega não é abandono
Richard Pae Kim lamenta que a entrega voluntária ainda seja cercada de estigma e preconceito no Brasil. Ele destaca que o abandono de uma criança não se confunde com a entrega voluntária para adoção regulamentada pelo ECA.
“O abandono e a ilegitimidade, seguidos do segredo e do estigma, ficaram histórica e psicologicamente vinculados, fazendo da separação entre mãe e filho, na entrega para adoção, um tema tabu a ser ocultado, ignorado e negligenciado. Temos de acolher a gestante e garantir que a criança seja, desde o princípio, protegida pela mãe, pelo Poder Público e pela sociedade, que tem o dever de garantir tanto seu direito fundamental à identidade como sua colocação em família adotiva”, pontua.
E acrescenta: “O conceito de abandono é comumente compreendido como enjeitar, não aceitar, recusar, desprezar, repudiar, repelir. As próprias mulheres, criadas nessa cultura que as culpabilizam por ‘abandono’, não conseguem se ‘autorizar’ a fazer a entrega de seu filho livres de culpa ou remorso. Para muitas, o temor do castigo, advindo do companheiro, da família, da sociedade, é mais forte que o seu receio de deixar seu filho num banco de praça. Para outras, com condições psicológicas já precárias, ‘livrar-se’ do filho anônima e rapidamente é a única alternativa possível. Contudo, bem diferente desse estigma, o ato de entregar um filho para a adoção pode estar imbuído de afeto e de uma preocupação da mãe biológica com o bem-estar dessa criança”.
O juiz afirma que a Resolução 485 e o Manual sobre a Entrega Voluntária do CNJ jogam luz sobre a necessidade de se cumprir a atual legislação e dão o pontapé inicial para aferição do tema, capacitação dos atores do Sistema de Justiça e do Sistema de Garantia de Direitos.
“O grande desafio é fazer cumprir o novo regime jurídico,o mais rapidamente possível. Esperamos, assim, que as normativas e orientações apresentadas no referido Manual possam subsidiar as decisões administrativas e judiciais e amparar um trabalho contínuo da rede de atendimento e do Sistema de Justiça em direção à garantia dos direitos da gestante, da mãe e da criança”, conclui.
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