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Casal que desistiu de adoção após 19 meses deve indenizar adolescente
Atualizado em 04/04/2024
Um casal que adotou uma criança de 11 anos e desistiu da adoção após um ano e sete meses foi condenado pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP. O adolescente, hoje com 15 anos, deverá ser indenizado em R$ 15 mil por danos morais.
O entendimento é de que a devolução de uma criança adotada após longo período e sem motivo justo é uma forma de violência, já que o menor é rejeitado por mais uma família. Por isso, configura abuso de direito dos adotantes, que não podem simplesmente desistir da adoção no momento que lhes for mais conveniente. A devolução só é normal quando o estágio de convivência ainda for inicial.
Conforme consta nos autos, o casal declarou, após 19 meses de convivência, que não desejava prosseguir com a adoção, pois a criança não correspondia ao perfil desejado. O Ministério Público paulista acionou a Justiça e a Vara Única de Getulina estipulou a indenização.
Ao recorrer, o casal alegou que, durante o convívio, o menino “se revelou arredio e demonstrou problemas de comportamento na escola, além de ter atitudes sexualizadas em relação à mulher e à filha do casal”. Argumentaram ainda que a desistência tardia aconteceu devido à duração do processo, com intervenção do MP, mas que a manifestação da vontade de interromper a adoção foi feita na primeira oportunidade.
O casal também defendeu não ter sido orientado “sobre as limitações da criança”. Por isso, não estavam preparados para recebê-la.
Ao avaliar o caso, o relator concluiu que os réus não foram mal orientados quanto às circunstâncias de saúde do adolescente. Segundo o magistrado, o casal foi informado logo quando foram contatados sobre a possibilidade de adoção, e o alerta foi reforçado após o primeiro contato.
Ainda conforme o relator, o casal demonstrou a intenção de oferecer cuidados, garantir a continuidade do tratamento psiquiátrico, incluir o infante no plano de saúde da família e proporcionar um suporte maior de aprendizagem.
Ao manifestar desinteresse em formalizar a adoção, após nove meses de convívio, o casal alegou que o menino não se inseria no perfil desejado, que era de uma criança entre três e nove anos, aceitando apenas doenças tratáveis. Também disseram que queriam resolver uma questão sobre a herança da sua filha biológica e aguardar a conclusão da avaliação neurológica do garoto antes de se posicionarem em definitivo sobre a adoção.
Na avaliação do relator, houve um “ato voluntário dos requeridos de não desistir do processo naquele momento, postergando-o em prejuízo do adolescente”. O magistrado também constatou negligência do casal ao interromper o acompanhamento multiprofissional e a medicação do garoto.
Segundo ele, isso “pode ter contribuído com a piora do quadro de saúde e comportamental do qual eles tinham pleno conhecimento”. Um laudo multiprofissional posterior, elaborado ao fim do convívio, também apontou que o casal demonstrava culpar o menor “por sua própria deficiência, o que é extremamente desfavorável ao desenvolvimento dele”.
Processo: 1000631-25.2022.8.26.0205.
Judiciário
“Não se trata de uma questão simples de analisar em um contexto no qual o Judiciário, reiteradamente, descumpre os prazos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990)”, observa a advogada Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
A especialista explica que a adoção tem prazo total de tramitação de 120 dias, prorrogável uma única vez por igual período, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária (ECA: §10, art. 47). No caso dos autos, “os adotantes, durante os 19 meses de convivência com o adolescente, foram detentores da guarda provisória e não da certidão de nascimento tendo-os como pais”.
“Guardiões provisórios, os adotantes, em seus imaginários fantasiosos, entendem que a medida é ‘provisória’ – usando uma analogia para configurar esse sentimento, seria uma espécie de guarda a título precário. A incerteza na conclusão do processo gera uma instabilidade que pode ser revertida nesta ’devolução’”, afirma.
Silvana entende que os adotantes do adolescente também não estavam preparados para essa adoção de criança maior, e não estavam aptos a lidar com as questões inerentes à adolescência. “Mais uma vez, a responsabilidade pode recair no Judiciário pelo não cumprimento do Provimento 36 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, vez que as Varas da Infância e da Juventude, quando existentes, não têm psicólogos, assistentes sociais e pedagogos em números suficientes para o adequado acompanhamento dos processos de habilitação e de adoção.”
“Defendemos que a adoção é uma filiação exatamente igual à filiação natural (CRFB: 227, § 6.º) e não concebemos, mesmo com todos os senões acima, que uma criança ou um adolescente possa ser ‘devolvido’ como uma coisa adquirida e que, com o tempo, apresentou um ‘vício oculto’, é assim, os ‘compradores’ podem devolver ao fabricante”, destaca a advogada.
Para a diretora nacional do IBDFAM, o valor arbitrado é “ínfimo diante desse novo abandono, cujas sequelas são inimagináveis”. Ela acrescenta que não fica claro se o casal também assumiu a obrigação de garantir a continuidade do tratamento psiquiátrico, manter o adolescente no plano de saúde da família ou contratar plano próprio e proporcionar um suporte maior de aprendizagem.
Desafios
Silvana do Monte Moreira destaca que muitos casais sonham com a adoção, porém, desistem do projeto adotivo ao se depararem com a realidade. “Sonham com todos felizes e vivendo momentos de alegria e harmonia, mas muitos sequer imaginam os desafios diários da maternidade e da paternidade, os momentos de desobediência e de contestação, birras e confrontos que fazem parte da rotina de todas as famílias, independentemente de sua forma de composição.”
“Por sua vez, o adolescente foi colocado no lugar de filho, usufruiu desse status durante 19 meses, sentia-se filho e irmão, eis que há relato que os adotantes têm uma filha. Esse segundo abandono, ou, usando uma neologia, esse reabandono, imprime fortes marcas para a criança ou adolescente que volta para o acolhimento, um sentimento de menos-valia, de não merecedor do amor, do afeto, do cuidado. Inúmeros gatilhos podem ser acionados, principalmente tratando-se de um adolescente com questões emocionais e psiquiátricas”, reconhece a especialista.
A advogada pontua a importância do cumprimento imediato do Provimento 36 do CNJ e dos prazos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como de um “maior cuidado no processo de habilitação”.
“Tem que ser criterioso com relação à análise do perfil desejado por quem se habilita. A observância do perfil dos habilitados sem a ocorrência de tentativas de expansão do perfil para quem não está apto para tal e mais critérios no momento da indicação”, avalia Silvana.
Ela também observa a necessidade de maior atenção durante o estágio de convivência e guarda provisória, com intervenções mais amiúdes, “utilizando-se, inclusive, as facilidades trazidas pela tecnologia”.
Por Débora Anunciação
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