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Romance póstumo de Gabriel García Márquez levanta debate sobre autonomia e liberdade após a morte

Na última semana, chegou às livrarias do mundo todo um romance inédito do escritor colombiano Gabriel García Márquez, falecido em 2014, aos 87 anos. A obra póstuma, intitulada "Em agosto nos vemos" (Record, 2024), não foi publicada em vida por decisão do autor, que teria deixado claro para sua família que faltava qualidade ao romance e que os originais deveriam ser queimados. Ainda assim, os filhos de García Márquez decidiram lançá-la, o que colocou em debate o respeito à autonomia e à liberdade para escolher os destinos da própria obra.
Trazida para o contexto brasileiro, a questão pode ser interpretada de acordo com a Lei dos Direitos Autorais (9.604/1998), segundo a advogada e professora Ana Luiza Nevares, vice-presidente da Comissão de Direito das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
“No artigo 24 da lei, estão previstos determinados direitos morais do autor, incluindo o direito de conservar a obra inédita, que é transmitido para os herdeiros. Podemos ter interpretações distintas sobre isso: se quem pode conservar a obra inédita pode publicá-la ou se só pode conservá-la sem publicá-la”, afirma.
O artigo 35 da referida lei estabelece que, quando o autor tiver dado uma versão definitiva para a obra inédita, seus sucessores não podem publicar versões anteriores.
“Isso mostra que a vontade do autor em relação aos seus trabalhos deve ser respeitada. Portanto, os herdeiros não poderiam violar essa vontade do autor, conforme preconizado pela Lei dos Direitos Autorais”, analisa.
Dilema
Segundo a advogada, quando um autor morre e deixa trabalhos inéditos, os herdeiros se veem entre respeitar a vontade e os direitos autorais do autor ou promover o acesso à cultura.
“Há esse debate sobre até que ponto as vontades do autor – tais como não publicar uma obra, mandar rasgá-la ou destruí-la – mereceriam tutela, considerando que as pessoas têm direito ao acesso à cultura. Essa é uma discussão importante nesse contexto”, comenta.
Diante disso, ela recorre ao artigo 11, § 1º, do Código Civil, o qual prevê que situação de natureza existencial pode ser tutelada pelos descendentes, cônjuges, companheiros e colaterais.
“No caso de Gabriel García Márquez, os filhos parecem ter sido aqueles que decidiram juntos fazer a publicação da obra. No entanto, pela lei brasileira, alguém, como o pai do autor, poderia pedir uma indenização ou reparação em face desses filhos, ou até mesmo solicitar a retirada da obra de circulação. Isso porque há uma amplitude de pessoas que podem fiscalizar o exercício dos efeitos pós-morte das situações jurídicas existenciais. Portanto, as consequências legais poderiam ser uma contrariedade ao fato de eles terem violado a decisão do autor”, ela explica.
Sendo assim, na medida em que todos os herdeiros consentiram a publicação, não há como garantir a vontade do autor da herança.
“É importante destacar que eles não mudaram nenhuma vírgula da obra, o que nos remete ao argumento do acesso à cultura. Até que ponto o autor pode ter essa vontade é uma questão central, embora seja diferente de um quadro já pintado e exposto em comparação com um livro não publicado”, avalia.
O livro
"Em agosto nos vemos" conta a história de uma mulher que viaja todo mês de agosto para visitar o túmulo de sua falecida mãe. Certa noite, ela cede às investidas de um homem no bar do hotel em que está hospedada. A partir daí, sua vida muda completamente. A cada mês de agosto, ela escolhe um amante diferente, esquecendo nesses prazeres as “obrigações” com o marido e os filhos.
O romance fecha uma trilogia “sobre o amor na idade madura”, que se iniciou com os romances “Do amor e outros demônios” (1994) e “Memória de minhas putas tristes” (2004).
O livro, escrito entre 2003 e 2004, data de uma época em que o colombiano já sofria e lutava contra o declínio das suas faculdades mentais. Por isso, os filhos Gonzalo e Rodrigo García Barcha acreditam que o pai poderia estar com a lucidez comprometida para julgar o que havia escrito.
“Se ao tomar essa decisão (de destruir o livro), ele estivesse em suas melhores faculdades mentais, esta edição certamente não teria existido”, explicou Rodrigo, segundo reportagem do jornal O Globo.
Os editores e os herdeiros garantem que a versão deixada por García Márquez não recebeu acréscimo na publicação. A edição brasileira do livro inclui quatro páginas de originais com anotações do autor. Há também um texto em que o editor Cristóbal Pera detalha o processo de criação, edição e revisão do livro, além das dificuldades.
Autor de clássicos como "Cem anos de solidão" (1967) e "Amor nos tempos do cólera" (1985), Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca, na Colômbia. Chegou a estudar Direito e Ciências Políticas na Universidade Nacional da Colômbia, mas não concluiu o curso, pois preferiu iniciar carreira no jornalismo.
Em 1982, o autor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra. À época, foi o primeiro colombiano e quarto latino-americano a receber o prêmio. Na ocasião, agradeceu com um discurso intitulado “A solidão na América Latina”.
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