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29 de janeiro: 20 anos do Dia Nacional da Visibilidade Trans
Em 2024, o Dia Nacional da Visibilidade Trans (29 de janeiro) será comemorado pela vigésima vez. Duas décadas após a criação da data, que promove a conscientização sobre os direitos das pessoas transexuais, desafios persistem e obstáculos antigos colocam a proteção dessa parcela vulnerável da sociedade em xeque.
Na visão da tabeliã Carla Watanabe, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o Dia Nacional da Visibilidade Trans volta os olhos da sociedade acerca da existência de um de seus grupos mais subalternizados: o das pessoas trans. “Trata-se de uma parcela diminuta da população, mantida nos porões da sociedade, vítima de estigmas que a ligam à marginalidade, à prostituição, ao consumo de drogas e à promiscuidade sexual.”
“A iniciativa celebra a busca pela igualdade material de pessoas cuja identidade de gênero é diversa da correspondente ao sexo assinalado quando do nascimento. O trânsito entre os gêneros, apesar de existente em outras culturas e épocas, não é aceito na sociedade contemporânea ocidental, especialmente nas sociedades patriarcais, como a brasileira, que adota padrões rígidos de binarismo de gênero”, pondera a especialista.
Segundo Carla, a discriminação contra as pessoas trans é tipicamente caracterizada por interseccionalidades das discriminações por gênero e por orientação sexual. “Formam vetores de subalternização aos quais podem se juntar outras formas de rebaixamento social, como as motivadas pela raça, origem e classe social.”
“É por esse motivo que as pessoas trans têm retirado de si o adjetivo de humano. Tornam-se objeto de repulsa social; outros acreditam que devam ser eliminadas por meio de um projeto de higienização social”, observa.
De acordo com a tabeliã, quem transita entre os gêneros não apenas perde parcelas de sua cidadania, por meio de um conceito jurídico de capitis diminutio, como também é completamente desapossado de si próprio. “Torna-se um ser abjeto que sequer merece a condição de humano.”
“A data permite resgatar ao menos um pouco da parcela de humanidade das pessoas trans, como forma de expressar nossa (r)existência”, avalia.
Avanços
No entendimento da especialista, as pessoas transexuais estão mais expostas à mídia na atualidade. “Esse processo acarretou efeitos positivos, como a eleição de representantes transgêneros para os legislativos de todas as esferas da federação.”
Segundo a tabeliã, a cúpula do Poder Judiciário reconheceu direitos básicos para as pessoas trans, como a possibilidade de retificação extrajudicial de prenome e de sexo – ADI 4.275-DF. “Os deletérios efeitos do binarismo de gênero ainda serão discutidos pelo Supremo Tribunal Federal – STF.”
“A inadequação dos transgêneros a padrões normativos preestabelecidos acarreta dificuldades ao exercício do direito à saúde – ADPF 787 e mesmo à possibilidade de constituir família – ADPF 899. Contra a conquista de direitos pela população trans, há o ressentimento de setores conservadores da sociedade. Eles estimulam o ódio e tentam criar um pânico moral ao associar os transgêneros à corrupção de valores vinculados às famílias e às crianças”, reforça.
Violência
Carla Watanabe percebe uma desumanização das pessoas trans. “Ao serem vistas como não humanas, torna-se lícita toda violência contra elas, mesmo aquelas tendentes a roubar-lhes a vida.”
Ela cita, como exemplo, o assassinato da travesti Dandara dos Santos, em 2017, em Fortaleza. Ressalta, porém, que a violência nem sempre é explícita.
“Apesar da ADO 26, que pune a homotransfobia, há inúmeras formas de discriminação, seja na vida social ou no universo do trabalho, não especificamente tipificadas pela Lei do Racismo. Eu mesma já fui vítima de inúmeras dessas práticas, como linchamentos virtuais, lawfare e bullying nas redes sociais”, lembra.
Outra forma de violência, segundo a especialista, é o apagamento. “É muito mais fácil praticar violência contra uma pessoa que virtualmente não existe.”
As práticas, complementa Carla, são expressão da discriminação estrutural, “frutos de uma concepção que não as vê como seres capazes de desenvolver competências, que mereceriam consideração social”.
“Ao contrário, o único local social possível para elas são as esquinas das ruas, onde podem ser vítimas de uma violência física e direta. Para esse imaginário, a pessoa trans se resume a sua sexualidade. Jamais poderia ser engenheira, advogada ou médica, muito menos cursar pós-graduações. O único lugar social permitido, além da prostituição, seria nos campos da estética ou da beleza. No máximo, poderiam atingir alguma fama no showbiz, a se apresentar em palcos de segunda categoria”, destaca.
Estatísticas
Carla Watanabe alerta: a discriminação de pessoas trans começa na própria família. “Ao perceberem que a criança é afeminada ou masculinizada, em dissonância com o papel de gênero dela esperado, nasce a violência, cujo resultado, muitas vezes, é a expulsão de casa.”
“Esse ato retira a rede de apoio dessas pessoas. Retiradas do lar, ficam sem família; expulsas da escola, retiram-se a possibilidade de educação formal e de emprego qualificado; jogadas na rua, muitas vezes recorrem à prostituição como única possibilidade de subsistência”, aponta.
A advogada cita o “Mapeamento de Pessoas Trans no Município de São Paulo”, realizado em 2021 pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea – CEDEC, que, segundo ela, é o “único levantamento confiável até hoje realizado no país sobre as pessoas trans”.
“Esse levantamento verificou que 32% das travestis vivem nas ruas do Município de São Paulo, sem moradia ou em moradias precárias, diante dos 16% dos transgêneros em geral. Este é um índice incomparável perante os 0,22% da população em geral, que vivem nessa condição, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD 2019”, aponta.
Com base na pesquisa, ela acrescenta: o indice de tentativas de suicídio nessa população é alto (41%), incomparável à da população em geral (1,6%). “Reflete a violência física e moral de que são vítimas essas pessoas.”
“No tema do mercado de trabalho, 27% da população transgênera do Município de São Paulo têm emprego formal, com carteira assinada. Entre os homens trans, 49% se encontram nessa condição; enquanto apenas 13% das travestis e 24% das mulheres trans se acham no mercado formal de emprego. Esse número é contrastante com os 60,2% da população em geral (considerada a população que se encontra no mercado de trabalho, de acordo com a PNAD).”
Outro tópico examinado pela especialista é a distribuição salarial. “De acordo com o IBGE, a remuneração média do brasileiro em 2019 foi de 3,16 salários mínimos (3,36 entre os homens; e 2,90 entre as mulheres), o que ratifica o menor valor atribuído ao trabalho feminino.”
“Nesse sentido, a população transgênero, no município mais rico do país, encontra-se na parcela mais vulnerável economicamente da população. 56% da população travesti e 55% das mulheres trans ganham até um salário mínimo por mês, o que demonstra a repercussão do patriarcado também entre as identidades transgêneras”, avalia.
Invisibilidade
Para a advogada e professora Jeanne Ambar, a legitimidade de direitos das pessoas trans surge das vozes, passeatas e reivindicações. “Por isso, é tão importante e significativa a celebração anual, não somente para comemorar direitos conquistados, mas também para conquistar muitos outros.”
“A data, porém, é apenas um lembrete do quanto ainda temos a fazer, tanto em sociedade quanto no Poder Judiciário, diariamente. O caminho é longo!”, comenta.
A advogada entende que mudanças ainda são necessárias. “Precisa mudar muita coisa, começando dentro de casa, nas escolas, nos ambientes de trabalho, na sociedade em geral.”
“É preciso mudar a visão antiga do mundo determinado apenas pelo sexo biológico. As pessoas precisam se abrir e expandir a mente para os novos formatos sociais já legitimados de gênero, de identidade, de famílias”, pontua.
A professora reconhece a necessidade de intensificar a educação de crianças, jovens, adultos e idosos, para garantir a efetividade da proteção das pessoas trans. “Precisamos combater o preconceito em todas as esferas sociais.”
Combater, segundo ela, é defender alguém do preconceito e da hostilidade. “É tomar as dores e partir em defesa de alguém vulnerável.”
Ela acrescenta: “Não basta esperar apenas o Judiciário. A sociedade também precisa abraçar a população trans e acolher”.
Efetividade
Autora de “O assassinato da mulher transexual e travesti – reflexões acerca da aplicação da Lei do Feminicídio”, com lançamento marcado para o primeiro semestre de 2024, Jeanne Ambar fez uma extensa pesquisa sobre julgados de assassinatos de mulheres trans no país. Com a análise de dados disponíveis nos sites dos tribunais, constatou a carência de sentenças de reconhecimento de feminicídio de mulheres trans.
“Aqui no Brasil, quando alguém que se enxerga como do gênero feminino (se veste, se comporta como mulher e adota um nome feminino), ao sofrer uma tentativa de assassinato ou ser de fato assassinada, seu caso vai a julgamento e é tratado somente como homicídio. Infelizmente, uma grande parcela da classe de magistrados também não se atualizou sobre o formato social”, esclarece.
O objetivo da pesquisa, segundo a especialista, é garantir a efetividade da proteção das pessoas trans, além de orientar o Judiciário, a sociedade e os profissionais do Direito.
Por Débora Anunciação
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